Hoje tropecei e detive-me nos meus
intricados rabiscos sobre o fascinante rabino Abraão Zacuto, que uns bons amigos
deram a conhecer há dias, num passeio temático em Évora. Emocionante a sua
história de vida e o seu contributo notável para a boa navegação portuguesa. O
meu muito obrigado ao mestre Zacuto.
O que acontece na esfera dos nossos interesses, gostamos de contá-lo
aos nossos amigos ou conhecidos. Ou revivê-lo com os que lá estiveram. Trata-se
de natural e simples partilha. Gostamos de adicionar os bons eventos aos
favoritos da nossa memória, numa espécie de mural. É aquilo que me proponho fazer
aqui, sentada ao computador, num domingo de manhã soalheiro e chilreador, aguardando
os da casa pela saída programada a Grândola. Outra localidade emblemática que,
para nós, tem algum estatuto residente no nosso roteiro. Como naquele painel de
azulejos de acolhimento à entrada da vila para os visitantes com a senha da
liberdade de abril…a letra de Grândola vila morena.
Preparada para mais uma viagem ao Alentejo. Mas ainda para lá não dei
início a condução e verifico que o meu coração de lá não chegou a sair:
continuo no último sábado em visita à outra localidade lindíssima além-tejo, a carismática
cidade de Évora. Que acarinhou a nossa poetisa Florbela Espanca. Porque este
encontro foi um convite para conhecer a influente história eborense, o seu
dinamismo e o rico património cultural, nenhuma contrariedade nos demoveu do rumo
em direção ao saber e ao prazer.
Dantes o meu astrolábio familiar apontava-me a mediclina num céu para arriba
Tejo, mas desde há muito fui reorientada para a sua margem pois ainda menina e
moça levaram-me da casa de minha mãe (de meu pai e irmãos) para um quase longe,
para as imediações do Feijó almadense. Creio que é um topónimo da frequente
presença brasileira na nossa zona. E como todos os pretextos são bons para revisitar
o meu primeiro lar lisboeta, do qual também tenho saudades, recordo
intencionalmente o sentimento que inspirou o conhecido escritor renascentista alentejano
Bernardim Ribeiro, autor da famosa Menina
em Moça, que tem como título de capa precisamente Saudades, numa segunda edição de Évora datada de 1557-58,
curiosamente impressa, como outras obras suas, na oficina do hebreu exilado
Abraão Usque em Ferrara (Itália). Um invulgar texto que contém um misto de
novela de cavalaria, de romance pastoril e novela sentimental. Que começa com
um monólogo de evocação de deslocação e de mudança de vida e discute histórias
de amores infelizes. Curiosamente contemporâneo da nova diáspora judaica para os
Países Baixos, forçada com a entrada em funcionamento do Tribunal da Inquisição
em 1540 em Portugal.
Ainda antes de começar a escrever este texto, fui olhar a
agenda para amanhã e deparei-me, deliciada, com mais alguns dos meus desorganizados
e preguiçosos gatafunhos telegráficos que paulatinamente tirei naquele dia
macio e solarengo de interior, sobre algo que fui ouvindo dos verdadeiros entendidos
sobre a Judiaria eborense: 1496, data do
princípio da decadência económica de Portugal com a expulsão dos judeus/ homens
proscritos com lei, mas sem terra; físicos maltratados que tratavam os corpos
doentes dos outros/com inúmeros talentos para a música sefardita
(judaico-ibérica), muito apreciada/e para o desenho e literatura como Almada
Negreiros, um dos nossos grandes artistas judeus, sobrevivente da comunidade
judaica portuguesa…. Pareceram-me íntimos e incompletos, os meus rabiscos. Mas
senti-me enlevada pelo sentimento de agrado que me impeliu àquelas notas de arabescos
rabi-iscados. Nos diferentes momentos e afáveis lugares: ora na rua dos
Mercadores, ora junto ao pátio de Salema, ou já na sala do teatro amador, ou ainda
na praça das Alterações a mastigar suculentos vegetais alentejanos…
Então agradeci ao gesto rotineiro
os garatujos quase esquecidos. Naquele agradável dia 23 de junho visitámos
juntos os típicos e discretos recantos históricos, alguns ainda marcados pela judiaria
vigorosa medieval, a Aljama, e ouvimos testemunhos valiosos de residentes estudiosos,
teósofos eborenses especialistas, artistas, arquitetos, professores e demais
convidados da religião judaica, das não judaicas e outros conhecedores do
ambiente (pre)histórico e astronómico daquela que é hoje uma surpreende e
romântica região alentejana de elevado património reconhecido pela UNESCO.
Foi de ficar a ver estrelas em
cromeleque amizade! Ainda que sem quaisquer tábuas astronómicas quinhentistas
que nos orientassem em tão empreendedora navegação desarmada contemplativa.
Corroios,
3 de julho de 2012
Rosa
Duarte
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