sexta-feira, 20 de julho de 2012

os meus rabiscos

 

Hoje tropecei e detive-me nos meus intricados rabiscos sobre o fascinante rabino Abraão Zacuto, que uns bons amigos deram a conhecer há dias, num passeio temático em Évora. Emocionante a sua história de vida e o seu contributo notável para a boa navegação portuguesa. O meu muito obrigado ao mestre Zacuto.

O que acontece na esfera dos nossos interesses, gostamos de contá-lo aos nossos amigos ou conhecidos. Ou revivê-lo com os que lá estiveram. Trata-se de natural e simples partilha. Gostamos de adicionar os bons eventos aos favoritos da nossa memória, numa espécie de mural. É aquilo que me proponho fazer aqui, sentada ao computador, num domingo de manhã soalheiro e chilreador, aguardando os da casa pela saída programada a Grândola. Outra localidade emblemática que, para nós, tem algum estatuto residente no nosso roteiro. Como naquele painel de azulejos de acolhimento à entrada da vila para os visitantes com a senha da liberdade de abril…a letra de Grândola vila morena.

Preparada para mais uma viagem ao Alentejo. Mas ainda para lá não dei início a condução e verifico que o meu coração de lá não chegou a sair: continuo no último sábado em visita à outra localidade lindíssima além-tejo, a carismática cidade de Évora. Que acarinhou a nossa poetisa Florbela Espanca. Porque este encontro foi um convite para conhecer a influente história eborense, o seu dinamismo e o rico património cultural, nenhuma contrariedade nos demoveu do rumo em direção ao saber e ao prazer.

Dantes o meu astrolábio familiar apontava-me a mediclina num céu para arriba Tejo, mas desde há muito fui reorientada para a sua margem pois ainda menina e moça levaram-me da casa de minha mãe (de meu pai e irmãos) para um quase longe, para as imediações do Feijó almadense. Creio que é um topónimo da frequente presença brasileira na nossa zona. E como todos os pretextos são bons para revisitar o meu primeiro lar lisboeta, do qual também tenho saudades, recordo intencionalmente o sentimento que inspirou o conhecido escritor renascentista alentejano Bernardim Ribeiro, autor da famosa Menina em Moça, que tem como título de capa precisamente Saudades, numa segunda edição de Évora datada de 1557-58, curiosamente impressa, como outras obras suas, na oficina do hebreu exilado Abraão Usque em Ferrara (Itália). Um invulgar texto que contém um misto de novela de cavalaria, de romance pastoril e novela sentimental. Que começa com um monólogo de evocação de deslocação e de mudança de vida e discute histórias de amores infelizes. Curiosamente contemporâneo da nova diáspora judaica para os Países Baixos, forçada com a entrada em funcionamento do Tribunal da Inquisição em 1540 em Portugal.

Ainda antes de começar a escrever este texto, fui olhar a agenda para amanhã e deparei-me, deliciada, com mais alguns dos meus desorganizados e preguiçosos gatafunhos telegráficos que paulatinamente tirei naquele dia macio e solarengo de interior, sobre algo que fui ouvindo dos verdadeiros entendidos sobre a Judiaria eborense: 1496, data do princípio da decadência económica de Portugal com a expulsão dos judeus/ homens proscritos com lei, mas sem terra; físicos maltratados que tratavam os corpos doentes dos outros/com inúmeros talentos para a música sefardita (judaico-ibérica), muito apreciada/e para o desenho e literatura como Almada Negreiros, um dos nossos grandes artistas judeus, sobrevivente da comunidade judaica portuguesa…. Pareceram-me íntimos e incompletos, os meus rabiscos. Mas senti-me enlevada pelo sentimento de agrado que me impeliu àquelas notas de arabescos rabi-iscados. Nos diferentes momentos e afáveis lugares: ora na rua dos Mercadores, ora junto ao pátio de Salema, ou já na sala do teatro amador, ou ainda na praça das Alterações a mastigar suculentos vegetais alentejanos…

Então agradeci ao gesto rotineiro os garatujos quase esquecidos. Naquele agradável dia 23 de junho visitámos juntos os típicos e discretos recantos históricos, alguns ainda marcados pela judiaria vigorosa medieval, a Aljama, e ouvimos testemunhos valiosos de residentes estudiosos, teósofos eborenses especialistas, artistas, arquitetos, professores e demais convidados da religião judaica, das não judaicas e outros conhecedores do ambiente (pre)histórico e astronómico daquela que é hoje uma surpreende e romântica região alentejana de elevado património reconhecido pela UNESCO.

Foi de ficar a ver estrelas em cromeleque amizade! Ainda que sem quaisquer tábuas astronómicas quinhentistas que nos orientassem em tão empreendedora navegação desarmada contemplativa.



                                                                           Corroios, 3 de julho de 2012
                                                                                            Rosa Duarte               

Sem comentários:

Enviar um comentário