quarta-feira, 18 de julho de 2012

há pessoas que nos inspiram


   Há pessoas que nos inspiram. Que nos fazem sonhar, elevar um pouco o sentido da nossa voz interior para proclamar o espírito empreendedor da nossa vontade. Em cada troço da viagem. A vida é uma viagem, enfatizava Mário Dionísio na sua preleção anual. Recordamo-lo com a cumplicidade de discípulos dos tempos intensos da liberdade menina. E da análise dos excertos de Tanta Gente, Mariana de Judite Carvalho, uma senhora que ele tanto estimava.

    - Rosa, porque é que o livro é sobre a solidão? E os risinhos estalavam; as minhas compinchas topavam os meus embaraços ao ser interpelada, encolhida numa das últimas bancadas, brindada com a atenção finamente letrada que no fundo eu tanto agradecia pela amena e sentida reflexão partilhada. Com todo o gosto, Professor. Diria hoje, comovida. Foi um privilégio. Tanta gente no auditório e o prof. fixara desde cedo o meu nome… Sentia-me constrangida, mas achada entre tanta gente, alguma ainda hoje amiga de verdade. Na Casa da Achada, à Mouraria, onde fui pela primeira vez este verão, visitei o espaço interior e exterior da casa-museu Mário Dionísio, aconchegada pelas ruas mouriscas pitorescas, quase escondida por muros e estreitezas, mimosa à vista, com soberbas telas e tudo!, tão intimamente artística e cosmopolitamente portuguesa! Afável com todos os visitantes apreciadores da palavra, da imagem e do espetáculo da cultura. Felicito a equipa e a família. Não há dúvida que não pode a morte arrastar o pensamento para o escuro quando a luz é potente e generosa.

    - Não se entusiasme tanto, setôra. Dizem-me alguns alunos, em cumplicidade e olhos doces, quando me embalo em retórica gesticulada recriando os meus ídolos das andanças criativas. Sorrio. E modero-me. Sinto-me contagiada pela aluna que fui a descobrir o mundo dos outros, também o de José Gomes Ferreira, e os seres com história a disseminar a sua sobrevivência com vigor e nobreza de caráter que sempre me encantam.

   Enlevada, entusiasmo-me também a falar de gente que nunca me interpelou ou conheceu, mas com quem me sinto ligada de modo sublime pela criação. Gente ausente e tão presente! E, no entanto, outros que vejo todos os dias, não os conheço. De quem tenho o cuidado de não falar.

   Mas falei há dias de padre António Vieira, o pai Grande dos ameríndios, o jesuíta embaixador da liberdade e da compaixão. Foi um português peregrino que soube aprender e usar a sua influência para abraçar a causa dos direitos dos índios do Brasil. Quantas pessoas arriscam a sua liberdade e comodidade para lutar pela liberdade dos outros?

   A vida só é intensamente vivida quando nos dedicamos às causas em que acreditamos. Num trajeto em que saber perder é aprender. Saber como sobreviver à fraqueza mais próxima. Como assistir a mágoa na desilusão. Como proteger o próprio da ignorância ou do medo. Como acreditar na arte da descoberta e no interesse pela poesia partilhada.

   Recorri à sua fiel aliada: vamos cantar poesia? Houve sugestões de letras, a propósito do estudo autobiográfico a partir de sonetos: Camões… Florbela… Declamar sim, cantar não. Alguns demarcaram-se, inseguros. Que não sabiam cantar… Mais uma viagem ao passado: Vocês lembram-se há uns anos, quando ainda não sabiam ler nem escrever e já cantavam, sem pruridos nem constrangimentos, com os colegas no infantário, em casa com os avós, nos passeios de carro com os pais?

   Olhares suspensos de instropeção… Insisti e cantámos, ou melhor, cantei com alguns timbres femininos atirados a medo. O estigma da nossa seriedade retraída, da cordialidade contida, da experiência preterida e não encorajada, mais uma vez a assombrar. Apelei à arte do espetáculo. Tomei-os pelo cachaço. Sobretudo aos expansivos. O teatro é o espetáculo artístico ao vivo mais completo: envolve texto, música, cenário, representação, técnicas criativas de luz e som, guarda-roupa, público, e ainda outros elementos da equipa com tarefas específicas importantes, como a encenação e o marketing.

   - Podemos representar, setôra?  Claro que sim, assim haja dedicação e espírito de equipa.

   Voltámos a cantar e os graves já se ouviram, sobretudo no refrão: E é amar-te assim, perdidamente


                                                                                     Laranjeiro, 11 de janeiro de 2012            
                                                                                                          Rosa Duarte

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