Há pessoas que nos inspiram. Que nos fazem sonhar,
elevar um pouco o sentido da nossa voz interior para proclamar o espírito
empreendedor da nossa vontade. Em cada troço da viagem. A vida é uma viagem, enfatizava Mário Dionísio na sua preleção
anual. Recordamo-lo com a cumplicidade de discípulos dos tempos intensos da
liberdade menina. E da análise dos excertos de Tanta Gente, Mariana de Judite Carvalho, uma senhora que ele tanto
estimava.
- Rosa,
porque é que o livro é sobre a solidão? E os risinhos estalavam; as minhas
compinchas topavam os meus embaraços ao ser interpelada, encolhida numa das
últimas bancadas, brindada com a atenção finamente letrada que no fundo eu
tanto agradecia pela amena e sentida reflexão partilhada. Com todo o gosto, Professor. Diria hoje, comovida. Foi um
privilégio. Tanta gente no auditório e o prof. fixara desde cedo o meu nome…
Sentia-me constrangida, mas achada entre tanta gente, alguma ainda hoje amiga
de verdade. Na Casa da Achada, à Mouraria, onde fui pela primeira vez este
verão, visitei o espaço interior e exterior da casa-museu Mário Dionísio,
aconchegada pelas ruas mouriscas pitorescas, quase escondida por muros e
estreitezas, mimosa à vista, com soberbas telas e tudo!, tão intimamente
artística e cosmopolitamente portuguesa! Afável com todos os visitantes
apreciadores da palavra, da imagem e do espetáculo da cultura. Felicito a
equipa e a família. Não há dúvida que não pode a morte arrastar o pensamento
para o escuro quando a luz é potente e generosa.
- Não
se entusiasme tanto, setôra. Dizem-me alguns alunos, em cumplicidade e
olhos doces, quando me embalo em retórica gesticulada recriando os meus ídolos
das andanças criativas. Sorrio. E modero-me. Sinto-me contagiada pela aluna que
fui a descobrir o mundo dos outros, também o de José Gomes Ferreira, e os seres
com história a disseminar a sua sobrevivência com vigor e nobreza de caráter
que sempre me encantam.
Enlevada, entusiasmo-me também a falar de
gente que nunca me interpelou ou conheceu, mas com quem me sinto ligada de modo
sublime pela criação. Gente ausente e tão presente! E, no entanto, outros que
vejo todos os dias, não os conheço. De quem tenho o cuidado de não falar.
Mas falei há dias de padre António Vieira, o
pai Grande dos ameríndios, o jesuíta embaixador da liberdade e da compaixão. Foi um português peregrino que soube
aprender e usar a sua influência para abraçar a causa dos direitos dos índios
do Brasil. Quantas pessoas arriscam a sua liberdade e comodidade para lutar
pela liberdade dos outros?
A vida só é intensamente vivida quando nos
dedicamos às causas em que acreditamos. Num trajeto em que saber perder é
aprender. Saber como sobreviver à fraqueza mais próxima. Como assistir a mágoa
na desilusão. Como proteger o próprio da ignorância ou do medo. Como acreditar
na arte da descoberta e no interesse pela poesia partilhada.
Recorri à sua fiel aliada: vamos cantar poesia? Houve sugestões de
letras, a propósito do estudo autobiográfico a partir de sonetos: Camões…
Florbela… Declamar sim, cantar não. Alguns demarcaram-se, inseguros. Que não
sabiam cantar… Mais uma viagem ao passado: Vocês
lembram-se há uns anos, quando ainda não sabiam ler nem escrever e já cantavam,
sem pruridos nem constrangimentos, com os colegas no infantário, em casa com os
avós, nos passeios de carro com os pais?
Olhares suspensos de instropeção… Insisti e
cantámos, ou melhor, cantei com alguns timbres femininos atirados a medo. O
estigma da nossa seriedade retraída, da cordialidade contida, da experiência
preterida e não encorajada, mais uma vez a assombrar. Apelei à arte do
espetáculo. Tomei-os pelo cachaço. Sobretudo aos expansivos. O teatro é o espetáculo artístico ao vivo
mais completo: envolve texto, música, cenário, representação, técnicas
criativas de luz e som, guarda-roupa, público, e ainda outros elementos da
equipa com tarefas específicas importantes, como a encenação e o marketing.
-
Podemos representar, setôra? Claro
que sim, assim haja dedicação e espírito de equipa.
Voltámos a cantar e os graves já se ouviram,
sobretudo no refrão: E é amar-te assim,
perdidamente…
Laranjeiro, 11 de janeiro de 2012
Rosa Duarte
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