O DIÁRIO
Laranjeiro, 18 de novembro de 2011
Às 22h00m
Há um ano atrás pedi aos meus alunos que escrevessem uma página de
diário, ou de noitário, como exercício de aplicação das características diarísticas
deste subgénero literário. Perante certas reações, tive que repensar a
solicitação do trabalho, porque alguns rapazes demarcaram-se dessa “tarefa para meninas”. Conversámos sobre
o assunto, mas o respeito por esta atitude (ainda) cultural prevaleceu. Este
ano decidi-me por uma autobiografia. Entretanto alguns optaram pela
fotobiografia. Assenti. Os seus breves passados já os faz estremecer e edificam-lhes
a personalidade, contados de preferência com retratos a cores. Mas o diário
ficou a burilar no nosso espírito, não fosse o Diário de Miguel Torga, num
excerto do III, um testemunho audaz de um homem firme que não se envergonha do
seu papel de escritor confidente perante tão prioritária ocupação como a dos
pescadores. Na praia de Buarcos (onde fica, setôra?), o autor vai trabalhar na
sua faina com as palavras para dar de comer aos carentes de melodia poética e
ideias de espanto e sedução. Não se sente constrangido com a vitalidade da
companha imprescindível, face à sua presença, tão solitária, silenciosa e
reservada, num ar amarelento de errante literato. O trabalho da gente do povo
contemplado por um olhar de cultor amante das letras. Pois, as palavras não
enchem barriga... Será snobismo elitista de doutor a cantar a dor dos pobres? A
fome é como a morte, não conhece estatutos. O artista explica-se: a obra nasce
à beira mar e multiplica-se aos olhos de quem a consegue ver, como uma flor
silvestre num ermo distante, tão próximo do rosto pueril do ser desperto para o
fascínio da criação. Como um estro que norteia o coração.
Professora e alunos sentimos também a dor como um gérmen da criação
literária. A mesma misteriosa chave que abre a porta do enamoramento e da contemplação.
Conversámos sobre o feio pela sua comovente tristeza. Procurámos em conjunto entender
o sublime porque sabemos que somos pedreiros. Praticámos a escrita criativa porque
o som da nossa voz não consegue esculpir com a mesma maturidade literária. Nós desejámos
elevar o espírito porque o caminho é só um no consentimento alheio. Nós vamo-nos
redescobrindo perante o tecido textual porque nos confrontamos com o ato de
pensar com sentimento as palavras, que as desejamos potentes de visualização e
expressão, como se transportassem álbuns de fotografias subliminares, projetadas
em filme ou num livro de banda desenhada. Imaginámos os nossos textos
pendurados como quadros intensos de cor e de traços de vida.
E concordámos que não precisamos de ser insultados, para nos
autoencorajarmos pela arte, como nos conta António Lobo Antunes (-Diz o predicativo do sujeito, idiota)
nas Crónicas. Não precisamos de ser
ignorados ou subestimados para compreender que o talento sufocado precisa de
respirar. Mas, qual ironia do destino, transformam-se os nossos sofrimentos em
estátuas vivas da experiência humana, não só perante aqueles que, honestamente
trabalham a terra ou à rede no mar, mas também defronte daqueles que, por aspirarem
a decifrar o código enigmático do deslumbramento humano, são discriminados porque
se revelam inconformados, perscrutadores ou mesmo subversivos.
Até amanhã.
Rosa Duarte
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