O LUGAR DA BELEZA NA LITERATURA
A
Beleza que existe em cada criatura e em cada movimento da natureza externa e
interna é recriada na arte, pelo olhar e pelo talento do artista.
Será toda a Literatura bela?
A estética literária é o encontro consciente da ideia criativa com a
expressão comunicativa. Das inúmeras expressões criativas do homem, a
Literatura é a arte, por excelência, da palavra. A sua beleza começa na experiência
de observação, cujo registo ou impressão induz à palavra pensada, que entretanto
fica prenhe de ideação e é intensificada pela sensibilidade e experiências do seu
autor, materializando-se no texto literário. É o parto da palavra criativa.
O conceito de beleza é amplo, dinâmico e circunscreve-se a cada cultura,
a cada época, a cada grupo e à vivência de cada indivíduo. (O próprio Sócrates
recusou-se a definir o belo).
Muita construção verbal, como sabemos, não se inscreve na arte
literária. Por isso, quando falamos de textos literários significa que o autor
usa a língua também como uma ferramenta pessoal, subjectiva (no Livro do Desassossego, Fernando Pessoa
diz: “Eu não escrevo em português.
Escrevo eu mesmo”(p. 353)).
Onde reside então o cunho criativo de um texto?
Se este não chegar a atingir a originalidade pela subversão das regras
formais, por exemplo sintácticas (ex.: “Transparente
de Foi, oco de ter-se” parte de um verso do poema Impressões do Crepúsculo de F. Pessoa), alcançá-la-á com ideias novas/inovadoras
e/ou com um tratamento inédito (humorístico, crítico, analítico, pertinente, atento,
interiorizado, diarístico, intuitivo…) ou ainda pelo simples uso engenhoso da
palavra, isto é, salientando o seu valor fónico ou morfossintáctico.
Não há dúvida que a Literatura é a arte por excelência que procura a beleza
na Palavra ao serviço da Ideia, numa inesgotável cumplicidade entre a sua forma
desenhada ou pronunciada, o seu conceito explícito escolhido e os outros
conceitos implícitos latentes numa relação equiparada ou hierarquizada com os vocábulos
implicados numa tessitura criativa textual.
Nós, utentes da língua, podemo-nos conhecer uns aos outros apenas de
vista; podemos fixar a expressão do olhar de alguém desconhecido, reparar e
decifrar a sua linguagem gestual ou corporal. Mas só nos reconhecemos como iguais
quando quebramos esse anonimato, ou seja, quando passamos à interacção verbal
que potencia os outros códigos paratextuais. Fomos criados pelo Verbo Divino.
Somos filhos do mesmo Pai e a nossa forma física densa é superintendida pela
mente que continua a necessitar de códigos convencionados para compreender e
comunicar.
Mesmo quando somos distintos no vestuário que escolhemos, nos gestos e
na forma de andar que adoptamos, ou no tipo de atenção que dispensamos, a
palavra que escrevemos ou falamos (mesmo que gesticulada) impõe-se como código
privilegiado de comunicação que, por um lado, nos distingue, mas que, por
outro, nos interliga a outros povos e nos integra, de acordo com o património
linguístico português, numa sequência hipónima: na cultura ibérica, na cultura
latina, na cultura europeia, na cultura indo-europeia.
A palavra é mais do que instrumento da ideia: é sopro profundo ou
símbolo metafísico.
Diz-nos J.Krishnamurti: “Sentir a
beleza, sentir uma palavra, o silêncio entre duas palavras, ouvir um som
claramente – tudo isso dá origem ao sentir. E devemos ter sentimentos fortes,
porque são somente os sentimentos que tornam a mente altamente sensível.” (in
A Vida, p.146). A palavra é som e vive
do silêncio. A palavra abençoa o pão, agradece o dia, saúda o recolhimento e
consola o sofrimento ou a solidão. A palavra sente-se nas pausas. É oração e
também meditação. A palavra Amor transcende a emoção, o pensamento, de alívio
ou sofrimento. É uma palavra de partilha. Cresce em discernimento
metalinguístico.
A beleza literária povoa o nosso mundo, desde os tempos ancestrais, com
ensinamentos, pensamentos, preceitos, mandamentos, parábolas, celebrações,
louvores, contemplações, poemas, tratados, rituais, crónicas, livros,
cancioneiros, cânticos e muitos outros.
Um bom livro tem sempre um título belo?
A capa de um livro é o rosto de um projecto e o título é o seu olhar de
convite, ainda que incompleto. Daí a natural preocupação do autor com a beleza
e originalidade oferecida nesse primeiro encontro.
O fenómeno da beleza reside no gérmen desencadeador de um fenómeno
íntimo magnético, cúmplice, amoroso que se desenvolve entre o criador e a sua
obra.
Um livro belo é gerado com amor, e é dado à luz com entrega e
companheirismo. Quando temos um livro belo em mãos, sentimos, muitas vezes,
vontade de acariciá-lo, cheirá-lo, protegê-lo, desfrutá-lo nos momentos íntimos
do nosso tempo.
Ainda no escaparate, o livro desvenda soltas palavras com ideias,
indicia um pouco os seus segredos, os seus enigmas, elegendo-se a potencial
amigo, ainda que seja só ocasional ou temporário, do leitor. Se a sua beleza
impressionar, deixará marcas indeléveis na memória humana.
A palavra pensada, inspirada ou germinada, é acarinhada pelo dom da
comunicação. A inspiração, venha da alegria ou da tristeza, de um momento
especial ou de uma vivência quotidiana, impele-nos para o acto da criação; como
nos conta na primeira pessoa o escritor português António Lobo Antunes (nas suas
Crónicas, por exemplo), ele, o homem,
é simples veículo de uma determinação superior quando escreve.
E vemo-las (as palavras) a sair de nós, soltas ou mais retraídas,
habituando-se gradualmente à claridade exterior da existência, no papel, no
computador ou na fala.
Uma palavra pode ser grande amiga em momentos de solidão; uma confidente
assídua em alturas de intimidade; uma amante traiçoeira em momentos de cegueira
ou de indignação; uma professora atenta em provas difíceis e frequentes.
A palavra é uma prenda decorada de traços e sons com sentido, nem sempre
esperada, nem sempre inesperada.
A beleza da palavra é inequívoca quando nos faz
sorrir ou suspirar, mesmo quando os seus sentimentos não são os nossos, mesmo
quando as personagens de uma história se disfarçam ou se escondem na
participação de um narrador mais omnisciente.
A beleza é também possível numa
palavra repetida, ou numa palavra reencontrada, reconstruída, mas também numa desamparada,
desconstruída na ordem instituída.
Tantas vezes bebemos as palavras. Comemo-las e esquecemo-nos de as
poupar ou de as coleccionar. Lavamo-las e sujamo-las, levamo-las connosco no
pensamento, vestidas, transvestidas, na pasta, no bolso e no novo suporte
electrónico. Embelezamo-las com a nossa emoção e comoção, a dormir, a sonhar, a
conviver ou simplesmente a reflectir. Sussurramo-las de mansinho ou gritamo-las
de despeito, desespero ou convicção.
Não há dúvida que as palavras são uma grande companhia. E também uma constante
terapia. Elas reinam na nossa mente quase em completa soberania.
Vivem em comunhão todo o dia como um hino à criação.
Da beleza das palavras nasce o amor da melodia, à alegria e à compaixão.
São bonitas as palavras que fazem declarações de amor à Vida.
Na Literatura, as palavras são o tudo e são o nada, o mito do pão na
boca do faminto. São aroma de canela e maçã na chávena de um cura, quando quer repousar.
Belas, bailam como cortinas nas folhas do dicionário, mas vão a miúdo à
janela como gente no nosso coração.
São mãos as palavras na construção da família e nos rituais quotidianos de
consagração. São a verdade maior no canto dos poetas em contínua fecundação.
Há beleza feminina na palavra fantasia e beleza masculina na palavra
satisfação. Beleza é palavra elegante em qualquer verso ou numa conversa entre
irmãos.
É um imenso discipulado, a beleza, onde vivem palavras alquímicas na
batuta do maestro ou no bastão de um peregrino.
Rosa Duarte
Eis um
poema belo dedicado à beleza intitulado:
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À Beleza
Não tens corpo, nem pátria, nem
família,
Não te curvas ao jugo dos tiranos. Não tens preço na terra dos humanos, Nem o tempo te rói. És a essência dos anos, O que vem e o que foi. És a carne dos deuses, O sorriso das pedras, E a candura do instinto. És aquele alimento De quem, farto de pão, anda faminto. És a graça da vida em toda a parte, Ou em arte, Ou em simples verdade. És o cravo vermelho, Ou a moça no espelho, Que depois de te ver se persuade. És um verso perfeito Que traz consigo a força do que diz. És o jeito Que tem, antes de mestre, o aprendiz. És a beleza, enfim. És o teu nome. Um milagre, uma luz, uma harmonia, Uma linha sem traço... Mas sem corpo, sem pátria e sem família, Tudo repousa em paz no teu regaço. Miguel Torga, in 'Odes' |
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