sábado, 28 de julho de 2012

o lugar da beleza na literatura portuguesa


                                        O LUGAR DA BELEZA NA LITERATURA


  A Beleza que existe em cada criatura e em cada movimento da natureza externa e interna é recriada na arte, pelo olhar e pelo talento do artista.

  Será toda a Literatura bela?

  A estética literária é o encontro consciente da ideia criativa com a expressão comunicativa. Das inúmeras expressões criativas do homem, a Literatura é a arte, por excelência, da palavra. A sua beleza começa na experiência de observação, cujo registo ou impressão induz à palavra pensada, que entretanto fica prenhe de ideação e é intensificada pela sensibilidade e experiências do seu autor, materializando-se no texto literário. É o parto da palavra criativa.

  O conceito de beleza é amplo, dinâmico e circunscreve-se a cada cultura, a cada época, a cada grupo e à vivência de cada indivíduo. (O próprio Sócrates recusou-se a definir o belo).

  Muita construção verbal, como sabemos, não se inscreve na arte literária. Por isso, quando falamos de textos literários significa que o autor usa a língua também como uma ferramenta pessoal, subjectiva (no Livro do Desassossego, Fernando Pessoa diz: “Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo”(p. 353)).

  Onde reside então o cunho criativo de um texto?

  Se este não chegar a atingir a originalidade pela subversão das regras formais, por exemplo sintácticas (ex.: “Transparente de Foi, oco de ter-se” parte de um verso do poema Impressões do Crepúsculo de F. Pessoa), alcançá-la-á com ideias novas/inovadoras e/ou com um tratamento inédito (humorístico, crítico, analítico, pertinente, atento, interiorizado, diarístico, intuitivo…) ou ainda pelo simples uso engenhoso da palavra, isto é, salientando o seu valor fónico ou morfossintáctico.

  Não há dúvida que a Literatura é a arte por excelência que procura a beleza na Palavra ao serviço da Ideia, numa inesgotável cumplicidade entre a sua forma desenhada ou pronunciada, o seu conceito explícito escolhido e os outros conceitos implícitos latentes numa relação equiparada ou hierarquizada com os vocábulos implicados numa tessitura criativa textual.  

  Nós, utentes da língua, podemo-nos conhecer uns aos outros apenas de vista; podemos fixar a expressão do olhar de alguém desconhecido, reparar e decifrar a sua linguagem gestual ou corporal. Mas só nos reconhecemos como iguais quando quebramos esse anonimato, ou seja, quando passamos à interacção verbal que potencia os outros códigos paratextuais. Fomos criados pelo Verbo Divino. Somos filhos do mesmo Pai e a nossa forma física densa é superintendida pela mente que continua a necessitar de códigos convencionados para compreender e comunicar.  

  Mesmo quando somos distintos no vestuário que escolhemos, nos gestos e na forma de andar que adoptamos, ou no tipo de atenção que dispensamos, a palavra que escrevemos ou falamos (mesmo que gesticulada) impõe-se como código privilegiado de comunicação que, por um lado, nos distingue, mas que, por outro, nos interliga a outros povos e nos integra, de acordo com o património linguístico português, numa sequência hipónima: na cultura ibérica, na cultura latina, na cultura europeia, na cultura indo-europeia.

  A palavra é mais do que instrumento da ideia: é sopro profundo ou símbolo metafísico.

  Diz-nos J.Krishnamurti: “Sentir a beleza, sentir uma palavra, o silêncio entre duas palavras, ouvir um som claramente – tudo isso dá origem ao sentir. E devemos ter sentimentos fortes, porque são somente os sentimentos que tornam a mente altamente sensível.” (in A Vida, p.146). A palavra é som e vive do silêncio. A palavra abençoa o pão, agradece o dia, saúda o recolhimento e consola o sofrimento ou a solidão. A palavra sente-se nas pausas. É oração e também meditação. A palavra Amor transcende a emoção, o pensamento, de alívio ou sofrimento. É uma palavra de partilha. Cresce em discernimento metalinguístico.

  A beleza literária povoa o nosso mundo, desde os tempos ancestrais, com ensinamentos, pensamentos, preceitos, mandamentos, parábolas, celebrações, louvores, contemplações, poemas, tratados, rituais, crónicas, livros, cancioneiros, cânticos e muitos outros.

  Um bom livro tem sempre um título belo?

  A capa de um livro é o rosto de um projecto e o título é o seu olhar de convite, ainda que incompleto. Daí a natural preocupação do autor com a beleza e originalidade oferecida nesse primeiro encontro.

  O fenómeno da beleza reside no gérmen desencadeador de um fenómeno íntimo magnético, cúmplice, amoroso que se desenvolve entre o criador e a sua obra.  

  Um livro belo é gerado com amor, e é dado à luz com entrega e companheirismo. Quando temos um livro belo em mãos, sentimos, muitas vezes, vontade de acariciá-lo, cheirá-lo, protegê-lo, desfrutá-lo nos momentos íntimos do nosso tempo.

  Ainda no escaparate, o livro desvenda soltas palavras com ideias, indicia um pouco os seus segredos, os seus enigmas, elegendo-se a potencial amigo, ainda que seja só ocasional ou temporário, do leitor. Se a sua beleza impressionar, deixará marcas indeléveis na memória humana.

  A palavra pensada, inspirada ou germinada, é acarinhada pelo dom da comunicação. A inspiração, venha da alegria ou da tristeza, de um momento especial ou de uma vivência quotidiana, impele-nos para o acto da criação; como nos conta na primeira pessoa o escritor português António Lobo Antunes (nas suas Crónicas, por exemplo), ele, o homem, é simples veículo de uma determinação superior quando escreve.

  E vemo-las (as palavras) a sair de nós, soltas ou mais retraídas, habituando-se gradualmente à claridade exterior da existência, no papel, no computador ou na fala.

  Uma palavra pode ser grande amiga em momentos de solidão; uma confidente assídua em alturas de intimidade; uma amante traiçoeira em momentos de cegueira ou de indignação; uma professora atenta em provas difíceis e frequentes.

  A palavra é uma prenda decorada de traços e sons com sentido, nem sempre esperada, nem sempre inesperada.

   A beleza da palavra é inequívoca quando nos faz sorrir ou suspirar, mesmo quando os seus sentimentos não são os nossos, mesmo quando as personagens de uma história se disfarçam ou se escondem na participação de um narrador mais omnisciente.

   A beleza é também possível numa palavra repetida, ou numa palavra reencontrada, reconstruída, mas também numa desamparada, desconstruída na ordem instituída.

  Tantas vezes bebemos as palavras. Comemo-las e esquecemo-nos de as poupar ou de as coleccionar. Lavamo-las e sujamo-las, levamo-las connosco no pensamento, vestidas, transvestidas, na pasta, no bolso e no novo suporte electrónico. Embelezamo-las com a nossa emoção e comoção, a dormir, a sonhar, a conviver ou simplesmente a reflectir. Sussurramo-las de mansinho ou gritamo-las de despeito, desespero ou convicção.

  Não há dúvida que as palavras são uma grande companhia. E também uma constante terapia. Elas reinam na nossa mente quase em completa soberania.

  Vivem em comunhão todo o dia como um hino à criação.

  Da beleza das palavras nasce o amor da melodia, à alegria e à compaixão.

  São bonitas as palavras que fazem declarações de amor à Vida.

  Na Literatura, as palavras são o tudo e são o nada, o mito do pão na boca do faminto. São aroma de canela e maçã na chávena de um cura, quando quer repousar.

  Belas, bailam como cortinas nas folhas do dicionário, mas vão a miúdo à janela como gente no nosso coração.

  São mãos as palavras na construção da família e nos rituais quotidianos de consagração. São a verdade maior no canto dos poetas em contínua fecundação.

  Há beleza feminina na palavra fantasia e beleza masculina na palavra satisfação. Beleza é palavra elegante em qualquer verso ou numa conversa entre irmãos.

  É um imenso discipulado, a beleza, onde vivem palavras alquímicas na batuta do maestro ou no bastão de um peregrino.                                       

                                                                                                                                              Rosa Duarte

 Eis um poema belo dedicado à beleza intitulado:
À Beleza
Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.

És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.

És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.

És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.

És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço...
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.

Miguel Torga, in 'Odes'

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