O MENINO
Era uma vez um
menino que acordava todos os dias a desejar um abraço. Pela tardinha, depois
dos outros meninos saírem da escola, caminhava pelas ruas do seu bairro à
procura de um amigo a quem pudesse dar um abraço, mas o ruído das sirenes das
fábricas e o ar denso dos fumos diversos tornavam o seu rosto ainda mais pálido
e triste. Sua mãe morrera quando ele nasceu e seu pai estava quase sempre
ausente porque só conseguia arranjar trabalho em pequenas obras, em cidades
afastadas dali. O pai, com o tempo, tornara-se um homem envelhecido, de fraca
figura, de ombros descaídos, rosto esguio e magro, pele escurecida pelo sol
rijo, olhos de um azul desbotado e distante. Era assim o retrato do seu pai,
que era, apesar de tudo, um pai cuidadoso e preocupado.
À noite, já
na cama, o jovem Filipe conversava com o menino imaginário, como o seu pai lhe
dissera para fazer, pois era um menino muito lembrado na noite de Natal.
Sozinho, a imaginar como seria aquela noite de Natal nas outras casas,
conversava, como começava a ser hábito, num tom de voz compenetrado:
- Menino Jesus, sabes que eu gostava de ter um amigo para abraçar de vez em quando... O meu pai é meu amigo. Trabalha muito para poder pagar esta casa, o que eu como...não paga a escola porque eu prefiro estudar sozinho com os livros usados que ele me traz. Como vês, sei falar mais ou menos bem. Até gosto de aprender. Mas alguns rapazes fazem troça da minha roupa na escola. Assim prefiro ficar em casa, cuidar dela, e o tempo que me resta, aproveito para ler um pouco e, depois, vou dar uma volta à procura de alguém para falar um bocadinho. Gostava de encontrar um amigo que me aceitasse como eu sou e como eu vivo. Até podia ter uma idade diferente da minha, mas que gostasse de dar umas voltas por aí comigo, que me desse, de vez em quando, um abraço como acontece entre os bons amigos. Podiass...
A voz foi-se tornando arrastada, balbuciada...Mal conseguiu acabar a conversa com o seu amigo imaginário, porque adormeceu repentinamente. Nem aguentou até à meia-noite. Estava muito frio naquela noite e ele, quando ainda estava a tentar dizer mais umas palavras, foi-se aconchegando o mais que pôde debaixo dos dois modestos cobertores que o cobriam naquela cama de grades brancas, bem riscada na cor, e nem deu pela chegada da sonolência. Ele gostava muito da sua caminha. Parecia pobre, mas nunca a conhecera em melhor estado. Não se queixava. Nem se queixava da roupa usada e antiquada, nem das mesmas batatas e ovos fiados pelo senhor Zé da loja da porta ao lado, todas as semanas. Às vezes, até lhe dispensava arroz corrente e cebolas. Mas o que ele mais desejava era um amigo que lhe fizesse alguma companhia e o tratasse com algum afecto. A velha tia Balbina, que morava dois quarteirões acima, visitava-o sempre antes de ele ir para a cama; convidava-o para a sua casa, mas ele preferia sempre a sua casa.
Nessa noite, Filipe sonhou muito. Ouviu sinos, em carrilhão, a tocar. Viu-se no meio de muitas árvores iluminadas de pequenas luzes cintilantes de muitas cores. Ouviu vozes de coro a cantarem, ao longe, cânticos ao seu amigo imaginário. A um olhar seu mais atento, pareceu-lhe ver um menino mais ou menos da sua idade a dormir em cima de palha seca num velho estábulo que conseguia vislumbrar na pequena clareira próxima daquelas árvores enfeitadas. Filipe sentiu vontade de ir até lá, mas algo prendeu uma das suas pernas. Os seus movimentos estavam muito lentos como se estivesse a flutuar no espaço. Sentia-se confortável, o que lhe pareceu estranho porque estava ao ar livre, no escuro, de pijama e o ar quente da sua respiração fazia reacção na atmosfera fria, o que era perceptível junto aos feixes intermitentes das luzinhas. Ao conseguir inclinar a cabeça para baixo, ficou meio assustado com um cordeirinho a morder-lhe teimosamente as suas melhores calças riscadas de dormir. A sua atrapalhação foi aumentando à medida que sacudia a perna e se sentia cada vez mais desajeitado e exausto. Só teve tempo para erguer um pouco a cabeça como que num olhar de auxílio em direcção ao leito do menino Jesus, que pareceu acordar com a sua atitude de sofreguidão...
- Béu, béu, béu!! - Não podia acreditar... Quem lhe teria posto aquele cachorrinho tão vivaço aos pés da sua cama? Filipe acordou de súbito com aquele presente tão ruidoso e animado, que desde logo acariciou várias vezes e o jovem animal, ainda de poucas maneiras, retribuiu lambendo-o vezes sem conta. O entusiasmo de Filipe foi tanto que abraçou e beijou o cãozinho como se o conhecesse há muito e só depois se recordou do pedido que tinha feito em pensamento ao seu amigo imaginário. Um amigo para abraçar! Como aquele pequenito tinha chegado até ali, Filipe ainda não tinha tido tempo de investigar, mas que lhe parecia coisa do menino Jesus, ai isso não tinha dúvidas. Aninhado de seguida aos seus pés, o cãozinho baixou o focinho branco e castanho e não tardaram os dois por adormecer, sorridentes, até que os raios da primeira alvorada do dia foram celebrados com o nascimento daquela duradoura e leal amizade.
Olívia Campos
Natal/2008
- Menino Jesus, sabes que eu gostava de ter um amigo para abraçar de vez em quando... O meu pai é meu amigo. Trabalha muito para poder pagar esta casa, o que eu como...não paga a escola porque eu prefiro estudar sozinho com os livros usados que ele me traz. Como vês, sei falar mais ou menos bem. Até gosto de aprender. Mas alguns rapazes fazem troça da minha roupa na escola. Assim prefiro ficar em casa, cuidar dela, e o tempo que me resta, aproveito para ler um pouco e, depois, vou dar uma volta à procura de alguém para falar um bocadinho. Gostava de encontrar um amigo que me aceitasse como eu sou e como eu vivo. Até podia ter uma idade diferente da minha, mas que gostasse de dar umas voltas por aí comigo, que me desse, de vez em quando, um abraço como acontece entre os bons amigos. Podiass...
A voz foi-se tornando arrastada, balbuciada...Mal conseguiu acabar a conversa com o seu amigo imaginário, porque adormeceu repentinamente. Nem aguentou até à meia-noite. Estava muito frio naquela noite e ele, quando ainda estava a tentar dizer mais umas palavras, foi-se aconchegando o mais que pôde debaixo dos dois modestos cobertores que o cobriam naquela cama de grades brancas, bem riscada na cor, e nem deu pela chegada da sonolência. Ele gostava muito da sua caminha. Parecia pobre, mas nunca a conhecera em melhor estado. Não se queixava. Nem se queixava da roupa usada e antiquada, nem das mesmas batatas e ovos fiados pelo senhor Zé da loja da porta ao lado, todas as semanas. Às vezes, até lhe dispensava arroz corrente e cebolas. Mas o que ele mais desejava era um amigo que lhe fizesse alguma companhia e o tratasse com algum afecto. A velha tia Balbina, que morava dois quarteirões acima, visitava-o sempre antes de ele ir para a cama; convidava-o para a sua casa, mas ele preferia sempre a sua casa.
Nessa noite, Filipe sonhou muito. Ouviu sinos, em carrilhão, a tocar. Viu-se no meio de muitas árvores iluminadas de pequenas luzes cintilantes de muitas cores. Ouviu vozes de coro a cantarem, ao longe, cânticos ao seu amigo imaginário. A um olhar seu mais atento, pareceu-lhe ver um menino mais ou menos da sua idade a dormir em cima de palha seca num velho estábulo que conseguia vislumbrar na pequena clareira próxima daquelas árvores enfeitadas. Filipe sentiu vontade de ir até lá, mas algo prendeu uma das suas pernas. Os seus movimentos estavam muito lentos como se estivesse a flutuar no espaço. Sentia-se confortável, o que lhe pareceu estranho porque estava ao ar livre, no escuro, de pijama e o ar quente da sua respiração fazia reacção na atmosfera fria, o que era perceptível junto aos feixes intermitentes das luzinhas. Ao conseguir inclinar a cabeça para baixo, ficou meio assustado com um cordeirinho a morder-lhe teimosamente as suas melhores calças riscadas de dormir. A sua atrapalhação foi aumentando à medida que sacudia a perna e se sentia cada vez mais desajeitado e exausto. Só teve tempo para erguer um pouco a cabeça como que num olhar de auxílio em direcção ao leito do menino Jesus, que pareceu acordar com a sua atitude de sofreguidão...
- Béu, béu, béu!! - Não podia acreditar... Quem lhe teria posto aquele cachorrinho tão vivaço aos pés da sua cama? Filipe acordou de súbito com aquele presente tão ruidoso e animado, que desde logo acariciou várias vezes e o jovem animal, ainda de poucas maneiras, retribuiu lambendo-o vezes sem conta. O entusiasmo de Filipe foi tanto que abraçou e beijou o cãozinho como se o conhecesse há muito e só depois se recordou do pedido que tinha feito em pensamento ao seu amigo imaginário. Um amigo para abraçar! Como aquele pequenito tinha chegado até ali, Filipe ainda não tinha tido tempo de investigar, mas que lhe parecia coisa do menino Jesus, ai isso não tinha dúvidas. Aninhado de seguida aos seus pés, o cãozinho baixou o focinho branco e castanho e não tardaram os dois por adormecer, sorridentes, até que os raios da primeira alvorada do dia foram celebrados com o nascimento daquela duradoura e leal amizade.
Olívia Campos
Natal/2008
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