sábado, 28 de julho de 2012

conto de natal


                                            CONTO DE NATAL


   Chovia. A relva, bastante verde naquele Inverno cinzento, brilhava, decorativa, com cristalinas gotas minúsculas que lentamente desciam pelos gumes verdes do tufado naquele parque agraciado com o nome de Liberdade. Era um espaço amplo, com alguns bancos de jardins e poucas árvores, sob um céu nublado que naquele instante reflectia recortes de sombras em movimento das nuvens riscadas pelo vento que as empurrava em direcção ao Norte, algumas cheias de vermelho luzidio nas extremidades. O sol, esse, pintava a poente as manchas cinzentas com pinceladas de um branco leitoso luzente em espontâneas e vigorosas ondulações quase com gravidade apocalíptica. De entre as poucas gaivotas que pairavam no ar sobre os prédios da cidade almadense à beira Tejo, desafiadas pelo vento, qualquer uma poderia ser amiga da pomba mensageira do Espírito Santo, tal era o seu porte harmonioso e firme frente ao prenúncio tempestivo… Nisto, distendendo bem as asas em direcção às suas companheiras de viagem, uma gaivota chilrou prolongadamente. O som inundou estranhamente aquela zona da cidade. O burburinho urbano quase parou. Até a chuva aliviou.

   Ao longe, uma criança em idade escolar fechava e abria o seu chapéu-de-chuva. A menina, animada, deitou mais do que uma vez a sua mão magra e escura ao fecho interior do chapéu, aproveitando para deitar um olhito folião às orelhas vermelhuscas aplicadas ao exterior do tecido, que simulava um ratinho. Como era divertido o seu chapéu-de-chuva! Mas sempre a remexê-lo, não estaria apanhar chuva sem dar conta disso? E levantou a cabeça para olhar o céu. Então pensou: Será que os adultos olham para o céu? Ainda tentou demover a sua impressão olhando à volta para os transeuntes. Nenhum! E é tão imenso e tão próximo de nós. E a rapariguinha, de rosto levantado, sentiu, por momentos, que fazia parte daquele céu, tão grave e tão poderoso!

   Lembrou-se da chuva. Mas já era tão miudinha que só compreendeu que caía quando ateimou com a vista em direcção às construções de ferro que estavam fixadas quase no topo do piso inclinado do parque. Talvez soprada pelo vento e pela vontade, a moça aproximou-se dos três braços de ferro oxidado, que pareciam cada vez maiores, musculados e expressivos, com mãos de dedos bem abertos, quase num pedido de ajuda ou de apenas atenção. Com cerca de seis metros, aqueles membros pareciam-lhe infindáveis. A chuva recomeçou, com grande vigor. A menina, assustada, sentou-se num recanto formado pelas chapas cruzadas de um braço e abriu apressadamente o seu lindo chapéu. As gotas da chuva, cada vez mais abundantes, batiam estridentes contra as chapas das três peças, fazendo um barulho ensurdecedor. Começaram a formar-se poças de água na relva e à volta das construções. Muito encharcada, a menina percebeu que o seu chapéu-de-chuva estava a ficar um emaranhado de varetas partidas. Ela lutava pela sobrevivência do seu presente de Natal, mas o vento era definitivamente mais forte e mais crescido. No rosto da menina misturavam-se agora as gotas da chuva e as lágrimas de medo e de comoção. Sentia-se ainda mais pequena e indefesa do que quando entrou para a escola. Quando terminaria aquela enxurrada?

   Por entre os ruídos daquele dia invernoso, de tranças um tanto desmanchadas e molhadas, a moça vislumbrou um vulto escondido junto a um dos braços de ferro, à sua esquerda. Seria um mendigo ou um animal assustado como ela? E, disfarçadamente, aguardou que a figura se aproximasse de si. Era um ser de estatura pequena, rosto plácido e brilhante, de boca pequena bem desenhada.

   - Olá! - Alguém lhe falou. A menina queria retribuir, mas ficou na dúvida porque o rapazinho não chegou a mexer os lábios quando a cumprimentou.

   - Sou eu, sim. – Desta vez, a moça desinibiu o olhar e reparou na expressividade do rosto daquele ser tão amigável e, ao mesmo tempo, tão familiar. Como poderia falar como ele, pensou.

   - Podes sim. Eu oiço quando pensas. Pensa à vontade comigo! – Aquilo era demais para ela. Ficou deslumbrada com aquela criatura.

   - Quem és tu? – Pensou finalmente a menina, depois de acalmar o emaranhado de emoções que a assaltavam.

   - Vivo aqui perto, por baixo deste parque. – Respondeu-lhe. – Gostas destes braços? Foi o meu pai que mandou fazer. Lá por baixo estão os corpos em ferro, de pé, com as cabeças inclinadas para a frente, tocando entre si os ombros esquerdos. Os seus rostos imitam os nossos. Achas-me bonito?

   A rapariga não queria responder ou pensar nisso, envergonhada. O rapaz agradeceu.     

   Entretanto os projectores junto às bases de ferro acenderam. Tudo ficou ainda mais brilhante e natalício. O céu, repararam, estava decorado com algumas luzinhas cintilantes. Mas a grande bola era amarela, aureolada, com manchas cinzentas no interior que lembravam nuvens de chuva. Ou poças de água…

   - Queres vir comigo ver os homens de ferro? – Perguntou-lhe o amigo duende.

   A menina sorriu e pensou que queria, mas depois lembrou-se da sua tia Alberta que fazia o favor de a ter lá em casa e revolveu despedir-se até ao dia seguinte.

    A menina tranquilamente pegou no que restava do seu chapéu-de-chuva, com carinho, levantou-se e disse alto ao amigo: Feliz Natal! – Os seus olhitos negros brilharam tanto quanto as estrelas que observou novamente naquele fundo negro, tão acolhedor!



                                                                                 Olívia Campos, Dezembro/2006

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