COMO UM ÚLTIMO SUSPIRO
Ó descendentes aventurosos da romana
gente,
Manifestemo-nos insatisfeitos com
a rotina de galinheiro na restrita política de rua da conjuntura atual. O ruído
urbano inibe a imaginação épica e o romanesco salvífico para certas crises, mesmo
as grosseiramente financeiras, que exigem valores mais elevadamente poético-literários
e culturais. A melodia dançante das encantatórias flautas dos pastores de
outrora, a muito custo hoje se cultivam e chegam pela brisa inspiradora a quem tais
tímidas e esquecidas sonoridades procura e quer apreciar as sadias cabrinhas suas
nos ermos montanhosos. Se virarmos o olhar para as pequenas urbes, com
vestígios rurais e escassos pastos que rareiam, os novos pastores aproveitam-nos,
mas envergonham-se de seus cajados e tremeluzem o olhar ao som de buzinadelas
nervosas dos condutores pouco bucólicos à passagem das suas saltitantes cabritinhas.
São cenários de resistência para o deleite contemplativo, em acelerada extinção
nos dormitórios periféricos.
No entanto, as artes no ciclo do tempo
ateimam nas reinterpretações simbólicas dessas naturais realidades. A letra, a
música e a pintura são incómodas testemunhas. Graça Morais participa e assina. O
homem deve-se perante o seu porte animal. A beleza requintado-grotesca de confluências
animalescas. Conheçamos o ser instintivo que está em nós. Criemos laços com a
natureza de que somos feitos. Questionemos as refeições em que cozinhamos os
nossos amigos de longas horas de pasto ou veraneios. Provemos a nossa amizade. A
eles, tão amorosos e engraçadinhos. Tão comunicativos, tão afetivos, alguns reduzidos
a pratos decorativos, a saborosos petiscos nas casas de pasto. De pasto para
humanos mastigadores. Outros, não comestíveis, nas ruas desprezados. Alguns com
mais porte do que nós. Se não mais humildes e companheiros. Que é ridículo sacralizar.
Para tanto, basta humanizar, ó humanos mamíferos. Cantemos o fungagá para os
mais novos. Eduquemos pelo exemplo do respeito alargado a qualquer ser vivente.
Que os bebés naturalmente abraçam e compreendem. Gosto e a cumplicidade protetora
inata pelos nossos amigos bichinhos que acabam invariavelmente recolhidos no
nosso estômago. Às vezes organicamente mal tolerados, mas insistente e
regularmente instalados nos canais da nossa carne. Do mal, o menos com a milenar
pastorícia, de campestres rituais e preceitos, sem a cruel era da alienação e
distanciação gélida bestiária. Que agora é engordar, esquartejar e comercializar.
Vá que ainda há quem denuncie o inconcebível no youtube. Animais mortos a golpes de serra elétrica…um rol
interminável de carnificinas!
Quando final e momentaneamente estamos saciados da escravizante boca, apuremos
o ouvido e escutemos o espírito e a consciência do sonho em cada cisne, o
feitiço da lua em cada lago, ávidos de maravilhoso lendário, que inebrie os
nossos sentidos de imaginação artística, e nos purifique num surpreendente e
gracioso momento de canto de despedida antes de, um dia, nos devolvermos à própria
morte. Nesta antecipada consciência, as lágrimas são vivências elevadas e imortalizadas
pela realidade regeneradora do ser humano: o amor à arte. Sentimos no pulsar o acelerado
coração de cisne monogâmico que, moribundo, morre assistindo à tristeza da companheira
solitária, que se afasta cabisbaixa do grupo e nunca mais é vista no lago. Afasta-se
até da companhia lunar e despoja-se do fôlego vital no momento do seu próprio
canto. Abraça-se à sua expectável e natural morte. A morte por amor. Este
romantismo entretanto desmistificado por Plínio, o Velho no ano de 77, não
enfraqueceu a lenda ao longo dos tempos nas várias manifestações artísticas. O humano
artista reúne todas as forças que lhe restam, no fim da vida, para compor ou
criar a sua obra-prima. À semelhança da ideia do título da coleção das canções
de Schubert, publicadas no ano da sua morte. Ou do espírito que persuadiu
escritores como José Cardoso Pires e José Luís Sampedro a escreverem sobre a
sua experiência de proximidade com a morte, como potenciais cânticos de verdadeiros
cisnes. A ideia do mavioso e último gorjeio do cisne soberbamente interpretada
na obra do compositor russo Tchaikovsky que, curiosamente, na sua estreia em
ballet dramático em 1877, no teatro Bolshoi em Moscovo, foi um fracasso, devido
à má interpretação da orquestra, dos bailarinos, da coreografia e a cenografia.
Contudo, a sua beleza excecional impôs-se e hoje é largamente interpretado e
celebrado pelas melhores companhias de ballet. É o fenómeno doloroso da morte
associado à beleza da entrega, numa dádiva melodiosa de esplendor e ascensão. O
cisne é o artista discreto no seu talento, belo no seu silêncio, claro no seu
amor cândido à arte, nem sempre compreendido e aplaudido, mas que dedica incondicionalmente
até ao último momento o seu fôlego como contributo assaz humano, já rasando a
dimensão do divino. Que se detém a olhar a morte, a soltar o seu expoente de
inspiração e a deixar-se tomar pelo êxtase de realização com a vida que procurou
conhecer, numa atitude derradeira de agradecimento à sua musa cantada: o amor
das coisas belas. Embalado e transportado pela sinfonia do momento final. Que entusiasticamente
oferece, mas não consegue de explicar. Que ainda quer ensinar, mas não consegue
pensá-lo ao experimentá-lo. Que o quer representar, mas lhe escapa o momento da
experiência genuína, somente permanecendo a ideia bela bem imitada ou fingida,
que acaba por se pretender deveras sentida. A ideia que afinal é o crescendo do
percurso da sua vida. Cada momento genial do autor é o momento de reencontro
com a essência genesíaca. O seu canto à morte, sua ou da morte de alguém como
se fosse a sua, e com ela morre também. “O homem só o é verdadeiramente quando
perde o próprio pai” (António Lobo Antunes, 2011).
E um amigo acaba de enviar-me esta
frase de Óscar Wilde: “If a man treats life artistically, his brain is his
heart”. A arte de viver passa a ser morada na nossa mente. É o próprio êxtase
da criação. Como a escrita da sua famosa carta De Profundis e o tema grandioso de Mozart que o inspira, que são
ambos inspiração de José Cardoso Pires e, presumo, de Clarice Lispector, a
propósito da morte temática, esta ainda com 19 anos quando escreve o livro Perto do Coração Selvagem (1944): “De profundis(…)O piano interrompeu a
insistência nas últimas notas e após um instante de repouso retomou docemente
alguns sons do meio, em melodia nítida e fácil” (p.85). Ao que indicia a
partida da sua personagem Joana.
Queridos cisnes tão encantados, saibamos
cantar a maravilhosa arte de viver, e a inevitável arte de morrer, porque o
amor eternizará a obra-prima em árdua construção do nosso Criador: o homem e a
mulher.
Corroios, 27 de junho de 2012
Rosa Duarte
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