Porque o óbvio não é impensável, pus-me a divagar, a propósito do tratamento ao objeto do meu trabalho que vou começando a redigir: a literatura enquanto valor criativo e consciente de um percurso de vida.
Criativo e consciente é o romance O riso de Deus de António Alçada Baptista que leva a um questionamento radical. Alçada Baptista questiona as escolhas da personagem central, o Francisco, as suas deambulações pelo mundo, instaurando uma reflexão que põe em balanço o seu percurso, tendo por contraponto limite a morte. Existe Deus? Possivelmente. De preferência um deus que saiba rir, um deus apaixonado pela pura alegria de existir. Concordam em uníssono os editores.
Então, com Ele, nesta perspetiva, o homem aprendeu a rir, não só por puro maravilhamento como por compaixão por si mesmo e pelo outro.
Empiricamente comprovado está que o riso é das melhores terapias para descontrair e criar a distância necessária face ao incómodo e à dor. Mesmo o riso irónico que pretende mordiscar, alimentado por um sentimento menos carinhoso, suaviza uma realidade porque a apresenta ludicamente menos amada para a deformar e caricaturar, q.b.. É uma ferramenta de utilidade pública gratuita e intrinsecamente inteligente. Ao vivo, o riso irónico é aquele sorriso esgaçado gutural que as palavras mais farpistas tão sonoramente articulam. Embora um pouco exibicionista ou teatral, o riso carece de apoios, porque reclama a presença do sorriso para não correr o risco de se transformar num não riso risível. Em contrapartida, o sorriso, na sua versão altiva e discreta, vive serenamente sem o riso; se for um sorriso espontaneamente sentido, surge como potencial rastilho para o agradável, desejado ou indecoroso riso a bandeiras despregadas. E desta feita, ainda que não ruidoso e menos expansivo, o sorriso pode ser mais contagiante. É certamente mais contido, logo socialmente aceite. Portanto eficazmente disseminável. Possível de quebrar qualquer gelo ao mais duro ser humano. Mesmo o dos mais depressivos. Em particular dos que se esforçam por sorrir: os bipolares, os solitários, os expatriados. Oferece o que não te custa e alimenta: um sorriso. Campanhas de recolha de fundos a fundo aparentemente perdido. Mera e incompreendida operação de humanização. Há já uns largos meses, na rádio, promoveram uma campanha quase do género: Uma buzinadela por um sorriso. Uma ideia extravagante, sem dúvida. Um buzinão para arrancar sorrisos em vez de insultos. Acho que os políticos foram os que aproveitaram essa ideia: não param de buzinar com a troika para nos arrancarem subsídios, postos de trabalho..ao fim ao cabo, os nossos tímidos sorrisos.
Óscar Wilde e o sorriso do morto. É mais um título feliz porque desperta um sorriso curioso. Sugere à partida a ideia de que é possível morrer a sorrir. Não contando com o sorriso artificial de uma contração muscular, como a daqueles bebés recém-nascidos que enganam os mais enternecidos. Começar e acabar a sorrir. Questiona-se: Será uma morte feliz quando a vida é feliz, ou será santa porque é indolor e serena? Mas o recurso à expressão morrer de riso… é cúmplice da fina ironia sobre um momento agradável da vida que tão bem define e nos auxilia pelo tom hiperbólico de vulgo. Ainda bem que a taxa estimada é inversa: o riso mata a tristeza. Sem risos, andaríamos ainda mais acabrunhados, com ansiedades e pânicos. Mas não há dúvida; é garantida a milagrosa imagem: ontem foi de morrer a rir, indicadora de um alto nível de apreciado humor. Aumenta a pulsação, dá cor às maçãs, ativa o abdómen, dispensa qualquer idioma, integra até o mais pequeno e inocente. É o sentido maior no teatro de comédia, na animação cinematográfica que muitas vezes empresta esta capacidade humana a outras espécies, em particular às hienas porque parecem divertir-se, quando estão a salvo, a rir dos outros cobardemente. É uma malandrice que participa das nossas analogias fantásticas mas que, ao observá-las deste lado de cá, da vida real, até as redirecionamos para a compaixão da vida mal protegida da natureza. Um dia, quem sabe, com a inevitável extinção… São as cores menos brilhantes da vida fora do ecrã. Por isso a arte é a escultura do sonho e da imaginação, tornando o mundo mais iluminado. Desdramatiza e propõe várias interpretações para a vida cíclica da criação. Dá-nos a possibilidade de reconhecer o nosso animal interior, alguns incomodativos e inclassificáveis, como nos conta o mestre José Cardoso Pires: “Não é difícil compreender que o escritor é um animal incómodo.[…]Jamais em completa paz com a época, dir-se-á.” (E Agora, José?, 1977, p.30).
Conhecerá alguém as fronteiras à sua alegria?
Noutro livro sobre a necessidade do retorno à escrita, De Profundis, Valsa Lenta, o mesmo autor vai apresentar divertidos companheiros de quarto de hospital, “dois passarões arruinados” (p.46), quais corvos impertinentes que se riem um do outro e de si mesmos como forma de se distanciarem da chegada da morte ou de a receberem de peito feito e mão na anca. Será de morrer a rir ou de rir do morrer? E se a morte se apaixonasse pela vida como nas Intermitências da Morte do José Saramago?
Rosa Duarte
Rosa Duarte
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