APOIO À FAMÍLIA
Fazer da família um suporte real do indivíduo, que é um ser em permanente
construção, tem sido objeto de estudo do projeto artístico em geral. Quantos
letrados recorrem à palavra para revisitar histórias de família, como por
exemplo aquela do viúvo preparado para a viagem que o levará até à sua senhora,
crente na união perpétua (Valter Hugo Mãe, O
filho de mil homens, cap.5)? Quantos realizadores de cinema recorrem à
representação para retratar a inédita beleza de cada amor filial (Pedro Almodóvar,
Tudo sobre a minha mãe)?
Criar é também exprimir o desejo do outro num discurso artístico que alguns
gostariam de fazer, mas não o fazem. Porque (ainda) não sabem. Porque é uma
vontade que exige um trabalho árduo. Vontade não apenas de se imaginar a fazer,
mas de fazê-lo de facto, num trabalho persistente e continuado, como o enlace
do instrumentista no seu instrumento várias horas por dia a tocar a mesma composição
musical. Enid Blyton dizia que ser escritora era sentar-se e escrever. Não partilhava
da crença na bênção do escritor pela musa inspiradora para iniciar a sua obra. É
uma atitude interessante pela intenção desmistificadora e despretensiosa que
constitui um convite espontâneo à criação e às inevitáveis reflexões sobre o
ato criador, por aspirantes e pelos veteranos nestas lides criativas.
Na frase simples e quase óbvia: a
arte serve para conhecer o mundo, Urbano Tavares Rodrigues faz-nos pensar no
papel vital da dimensão artística para a comunicação que é muitas vezes
descurada na formação de qualquer ser humano. A escrita, simultaneamente dom e necessidade,
serve a todos para comunicar. Como sentir e desenvolver qualquer dom? O
pedagogo americano Ken Robinson escreve sobre a importância da descoberta do
elemento criativo em cada indivíduo para o seu desenvolvimento. É urgente o lado
interessante da vida, sem o qual o trabalho útil e eficiente dolorosamente se
suporta. A música, feita de execução e técnica, só é bela quando é bem tocada ou
cantada porque é sentida e irrepetivelmente interpretada; assim acontece com as
palavras que não servem apenas para substituir a presença de um objeto ou de uma
emoção convencionada, mas para ser ela mesma uma palavra sentida, logo, vivida de
forma única por cada leitor (mesmo pelo autor-leitor).
Há muitos anos num projeto escolar, numa turma de ensino básico (currículos
alternativos) em que as palavras eram sentidas pela arte habitualmente presente,
ricas na sua diversidade cultural e no convívio assíduo, foi organizada uma
semana cultural que deu conta à comunidade do muito que cada um tinha para
contar sobre os seus costumes e expressões artísticas afroeuropeias, da qual os
registos ainda comovem.
Neste
ano, os alunos de uma turma de CEF de Apoio à Família apelam-me às memórias
pelo seu perfil de caminhos distintos, sem sobras afetivas, que são tão emergentes
neste período da sua juventude. Fazem-me pensar que precisam de se dar a
conhecer e de extravasar a sua individualidade em busca do reconhecimento. Que
precisam de ouvir a sua voz, de negociar a sua vontade com o outro, de dar
sinais de presença, de se integrarem no grupo-escola e (re)aprender o valor do respeito
mútuo. A sua noção de família parece-me ser séria e co-responsável.
Muitos estudiosos e pedagogos
sabem aconselhar e ensinar como desenvolver uma boa relação familiar, e no seu dia
a dia com a sua própria família os programas que promovem de construção
familiar nem sempre são aplicados ou concertados. Sabemos que a grande maioria
dos pais e educadores só conheceram a sua própria experiência familiar enquanto
filhos, naturalmente. E porque aprendemos sobretudo com aqueles que amamos, os
exemplos são os mais dialogantes. Refiro mais uma vez o nome da famosa
escritora inglesa, que povoou de emoção e aventura a minha infância e adolescência
com as aventuras dos Cinco e dos Sete, e no entanto consta que teve
dificuldade em se entregar emocionalmente aos seus filhos (vide, por ex., o filme Enid).
Convidava frequentemente os seus jovens fãs para as hilariantes horas do chá
que organizava e achava que não precisava de convidar os seus próprios filhos.
Então dou por mim a pensar em alunos como estes que frequentam aulas
para os habilitar a dar apoio a outras famílias, muitas quem sabe como as suas,
e olho-os, alunos já não meninos, sérios portadores de uma meninice adiada
prestes a emudecer, ainda com um olhar chispando ou endiabrado.
Laranjeiro, 26 de outubro de 2011 Rosa Duarte
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