HOJE APETECE-ME ESCREVER-TE, PAI NATAL
Perdoa-me por ter deixado há quarenta anos de acreditar na tua
existência, mesmo estando tu tão galhofeiro no álbum da minha escola primária
número 162 a dar-nos passoubens. Muitas lágrimas silenciosas inundaram a sala
da primeira classe, onde tive a ousadia de afiançar que em casa dos meus pais eram
teus os passos abafados no corredor junto ao meu quarto…Podia ter assumido o engano,
claro, ou também ter rejeitado prontamente a desgostosa notícia da tua
inexistência em plena aula, autêntica praça pública, mas preferi remoer o
sentimento, engolir o choro e não ateimar mais. Desde então todos os anos verto
uma lágrima a pensar em ti, porque, sabes, sou fiel às amizades, sejam elas de
que condições sociais ou ficcionais forem. A verdade é que matar quem nunca
existiu é lamentável. E lamento porque me lembro das crianças sentimentais que fomos
e tu eras uma espécie de avô nas histórias natalícias das crianças da minha
idade. Longe de te associarmos ao figurino rotulado da coca-cola que ainda
ignorávamos de todo. Enfim, eras uma espécie de familiar próximo, mandatado
pelo menino Jesus, para povoares o imaginário infantil e existires nos nossos
corações. Eras aquele pai fixe que não se zangava, que estava à porta das lojas
apenas para oferecer um sorriso e um colo macio, e animar os putos sem prendas,
colados às montras, sempre pronto a dar uma gargalhada contagiante e nunca farto
de aparecer em muitos bairros à mesma hora. Sempre giros, os teus trenós e os
cervídeos amigos. Contigo tudo era possível. Eras uma espécie de super herói da
causa natalícia. Ainda hoje, todos te querem imitar no aspeto tipicamente
longevo e de ternura. Até as mães natais nessa noite não se importam de ser anafadas
e barbudas.
Talvez ainda te lembres que na casa dos
meus pais recebíamos poucos presentes porque éramos muitos e, com muita sorte, tocavam-nos
alguns no natal, nos aniversários e quando passávamos de ano. O sapato melhor
era cerimoniosamente colocado sobre papel de fantasia junto à chaminé de pedra
(batíamos o pé para que os nossos pais também pusessem o deles) dispostos de
forma a dar espaço de sobra para prendas volumosas que cada um te tinha pedido,
em carta escrita, sobrescrito e tudo, que o mais velho fazia de conta teres
recebido, fazendo juízos compenetrados sobre o nosso merecimento ou não dos prémios
celestiais. A lista não podia ser longa, prevenia-nos. As malandrices acumuladas
eram deduzidas no i.r.s. (incrível recompensa sintomática)…Enfim… lá indagávamos a tua morada, para fazer chegar a
missiva a parte certa, mas as respostas não eram consensuais sobre o teu
endereço: rua portas do céu, travessa do paraíso, casa do pai natal, beco
fábrica das renas, largo da lapónia… Na noite de natal demorávamos a adormecer.
Então, eu sonhava, agitada, que estavas à entrar, de pulo em pleno voo, pela
chaminé, sem respirar e de barriga encolhida, com as barbas empoeiradas, a
espirrares e a dispores com arte e magia todas as prendas nos seus lugares, sob
uma cortina de balões coloridos e muitos doces variados que ficavam dependurados.
Não percebia, na altura, porque é que a minha mãe nunca queria pôr o seu sapatinho
na chaminé; o seu ar pensativo intrigava-me… Ainda hoje eu conservo essa
maneira de ser ingénua quando as pessoas falam à socapa ou fazem dissimuladas
expressões faciais à minha beira…ocorre-me logo a ideia de me quererem preparar
uma festa surpresa. Mas nessa altura eu era demais, era daquelas meninas do
papá à espera que o mundo de fantasia desabrochasse em arco-íris multicores maravilhosos
animando desejos de ondina mergulhada nas belezas exóticas do mundo marinho, ou
de sininho auxiliar do intrépido Peter Pan, ou ainda de gaivota peregrina grasnando
em amena cavaqueira com o jovem Fernão Capelo.
Hoje apeteceu-me escrever-te neste começo de noite de dezoito do último
mês. Há um ano tocava pela derradeira vez o rosto do meu pai que me ralhava quando
era preciso, entusiasta do teu encanto imaginário, amordaçado pelo silêncio
dolorido, de olhar quase presente, abnegado de brilho e constrangimento. Adeus, pai, somei eu mais uma grossa lágrima
prenha de olhar, que pronta se despenhou na vã esperança de que ele ainda me ouvisse.
Rostos anónimos voltaram-se para mim e comoveram-se, enternecidos também com os
seus doentes. Foi a nossa despedida possível. Mais um pai que sucumbiu aos
caprichos do tempo. Mais uma ausência de sentimento cada vez mais presente.
É para ti, pai, que escrevo estas linhas ao compasso do despertador que
enche a noite limpa de gestos magoados, nas delicadas sombras da caneta dançante
em alvo papel de pequeno bloco, adormecendo-me o pensamento ao som da gente do
lado de fora, a quem os natais devolvem ao lar as famílias.
Querido pai também do natal, peço-te que não ignores esta minha carta,
apesar de (já) não existires, pois continuo grata pela tua alegria, pela tua
velhice intemporal que dá cor a todas as flores infantes do campo e se estende aos
canteiros da tapada que o nosso fado vadio canta. Podia escrever-te um daqueles
postaizitos encerados de 15 escudos que comprava na banca tosca da varina do
meu bairro, mas têm pouco espaço e eu tinha assunto antigo para pôr em dia. Hoje
já podia mandar-te um dos que abrem com o menino dobrado a meio nas palhinhas numa
cabana articulada de papel, palrando para os bonecos de borracha, teus sósias
de plástico de encher e carroças em madeira de empurrar, apregoados: – Olhó
brinquedo, freguesa!
A lua já vai alta. Obrigado por me leres com a inocência disfarçada de
adultez nos horizontes brumosos, de veres a menina que fui adormecida no teu
olhar, de trazeres a noite depois das minhas pernas crescerem, de ainda ouvires
a consoada presa na moldura, de teres envelhecido para fazeres companhia aos
outros pais e avós que precisam de ti e dos teus perfumes enfeitados e das tuas
gargalhadas solidárias.
Espero, meu amigo, que esta carta que te encontre de boa saúde no nosso
coração, que nós ficaremos bem, se Deus quiser. Feliz natal. Boa noite. Adeus. Nós
voaremos um dia com as tuas aves. Bem hajas.
Natal,
18 de dezembro de 2011
Rosa
Duarte
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