sábado, 28 de julho de 2012

hoje apetece-me escrever-te


HOJE APETECE-ME ESCREVER-TE, PAI NATAL



                                                                                                                      Querido Pai Natal,


   Perdoa-me por ter deixado há quarenta anos de acreditar na tua existência, mesmo estando tu tão galhofeiro no álbum da minha escola primária número 162 a dar-nos passoubens. Muitas lágrimas silenciosas inundaram a sala da primeira classe, onde tive a ousadia de afiançar que em casa dos meus pais eram teus os passos abafados no corredor junto ao meu quarto…Podia ter assumido o engano, claro, ou também ter rejeitado prontamente a desgostosa notícia da tua inexistência em plena aula, autêntica praça pública, mas preferi remoer o sentimento, engolir o choro e não ateimar mais. Desde então todos os anos verto uma lágrima a pensar em ti, porque, sabes, sou fiel às amizades, sejam elas de que condições sociais ou ficcionais forem. A verdade é que matar quem nunca existiu é lamentável. E lamento porque me lembro das crianças sentimentais que fomos e tu eras uma espécie de avô nas histórias natalícias das crianças da minha idade. Longe de te associarmos ao figurino rotulado da coca-cola que ainda ignorávamos de todo. Enfim, eras uma espécie de familiar próximo, mandatado pelo menino Jesus, para povoares o imaginário infantil e existires nos nossos corações. Eras aquele pai fixe que não se zangava, que estava à porta das lojas apenas para oferecer um sorriso e um colo macio, e animar os putos sem prendas, colados às montras, sempre pronto a dar uma gargalhada contagiante e nunca farto de aparecer em muitos bairros à mesma hora. Sempre giros, os teus trenós e os cervídeos amigos. Contigo tudo era possível. Eras uma espécie de super herói da causa natalícia. Ainda hoje, todos te querem imitar no aspeto tipicamente longevo e de ternura. Até as mães natais nessa noite não se importam de ser anafadas e barbudas.

    Talvez ainda te lembres que na casa dos meus pais recebíamos poucos presentes porque éramos muitos e, com muita sorte, tocavam-nos alguns no natal, nos aniversários e quando passávamos de ano. O sapato melhor era cerimoniosamente colocado sobre papel de fantasia junto à chaminé de pedra (batíamos o pé para que os nossos pais também pusessem o deles) dispostos de forma a dar espaço de sobra para prendas volumosas que cada um te tinha pedido, em carta escrita, sobrescrito e tudo, que o mais velho fazia de conta teres recebido, fazendo juízos compenetrados sobre o nosso merecimento ou não dos prémios celestiais. A lista não podia ser longa, prevenia-nos. As malandrices acumuladas eram deduzidas no i.r.s. (incrível recompensa sintomática)…Enfim… lá indagávamos a tua morada, para fazer chegar a missiva a parte certa, mas as respostas não eram consensuais sobre o teu endereço: rua portas do céu, travessa do paraíso, casa do pai natal, beco fábrica das renas, largo da lapónia… Na noite de natal demorávamos a adormecer. Então, eu sonhava, agitada, que estavas à entrar, de pulo em pleno voo, pela chaminé, sem respirar e de barriga encolhida, com as barbas empoeiradas, a espirrares e a dispores com arte e magia todas as prendas nos seus lugares, sob uma cortina de balões coloridos e muitos doces variados que ficavam dependurados. Não percebia, na altura, porque é que a minha mãe nunca queria pôr o seu sapatinho na chaminé; o seu ar pensativo intrigava-me… Ainda hoje eu conservo essa maneira de ser ingénua quando as pessoas falam à socapa ou fazem dissimuladas expressões faciais à minha beira…ocorre-me logo a ideia de me quererem preparar uma festa surpresa. Mas nessa altura eu era demais, era daquelas meninas do papá à espera que o mundo de fantasia desabrochasse em arco-íris multicores maravilhosos animando desejos de ondina mergulhada nas belezas exóticas do mundo marinho, ou de sininho auxiliar do intrépido Peter Pan, ou ainda de gaivota peregrina grasnando em amena cavaqueira com o jovem Fernão Capelo.

   Hoje apeteceu-me escrever-te neste começo de noite de dezoito do último mês. Há um ano tocava pela derradeira vez o rosto do meu pai que me ralhava quando era preciso, entusiasta do teu encanto imaginário, amordaçado pelo silêncio dolorido, de olhar quase presente, abnegado de brilho e constrangimento. Adeus, pai, somei eu mais uma grossa lágrima prenha de olhar, que pronta se despenhou na vã esperança de que ele ainda me ouvisse. Rostos anónimos voltaram-se para mim e comoveram-se, enternecidos também com os seus doentes. Foi a nossa despedida possível. Mais um pai que sucumbiu aos caprichos do tempo. Mais uma ausência de sentimento cada vez mais presente.

   É para ti, pai, que escrevo estas linhas ao compasso do despertador que enche a noite limpa de gestos magoados, nas delicadas sombras da caneta dançante em alvo papel de pequeno bloco, adormecendo-me o pensamento ao som da gente do lado de fora, a quem os natais devolvem ao lar as famílias.

   Querido pai também do natal, peço-te que não ignores esta minha carta, apesar de (já) não existires, pois continuo grata pela tua alegria, pela tua velhice intemporal que dá cor a todas as flores infantes do campo e se estende aos canteiros da tapada que o nosso fado vadio canta. Podia escrever-te um daqueles postaizitos encerados de 15 escudos que comprava na banca tosca da varina do meu bairro, mas têm pouco espaço e eu tinha assunto antigo para pôr em dia. Hoje já podia mandar-te um dos que abrem com o menino dobrado a meio nas palhinhas numa cabana articulada de papel, palrando para os bonecos de borracha, teus sósias de plástico de encher e carroças em madeira de empurrar, apregoados:   Olhó brinquedo, freguesa!

   A lua já vai alta. Obrigado por me leres com a inocência disfarçada de adultez nos horizontes brumosos, de veres a menina que fui adormecida no teu olhar, de trazeres a noite depois das minhas pernas crescerem, de ainda ouvires a consoada presa na moldura, de teres envelhecido para fazeres companhia aos outros pais e avós que precisam de ti e dos teus perfumes enfeitados e das tuas gargalhadas solidárias.

   Espero, meu amigo, que esta carta que te encontre de boa saúde no nosso coração, que nós ficaremos bem, se Deus quiser. Feliz natal. Boa noite. Adeus. Nós voaremos um dia com as tuas aves. Bem hajas.

                                                                                               Natal, 18 de dezembro de 2011



                                                                                                      Rosa Duarte

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