AH, FADISTA!
Ah, grande fadista que é o nosso povo. De um fado destino que não são só
cantigas. É a alegria da dor por estarmos vivos. Música não fiada, nem sempre antes
consentida. É um fado desventrado pelo parto da poesia. Com urbanidade e
melancolia. E não há destino como o do fado castiço. Sem cortesias. Único e
sentimentalista.
Nascidos do som, fonte da criação primordial, o grito iça todos os
fonemas soltos, palavras pensadas e as sentidas, e cresce num laço em coroa
musical singular na ourivesaria da vida. Do povo à monarquia do encantamento se
estendeu entronado pela UNESCO. Merecidamente. A par, é claro, de outras formas
de expressão musical igualmente castiças como a espanhola e a paraguaia. Como
uma voz de assalto à vida sofrida dos bairros enjeitados, de espada em riste
para trepar a escala, grave ou aguda, séria da melopeia em taberna marceneira. Sempre
com um Alfredo no pódio a desgarrar. A cada passo ouve-se um basa lá rua fora em som cruzado com o
cauteleiro que anuncia a grande. Às vezes, de xaile descaído, chorando as
vielas sombrias em invocações ao homem verdadeiro, em rebrilho de pele encarquilhada
da Mariquinhas da tasca À Rasquinha
do Tó Fisga. E vamos embora Pacheco que se faz tarde com a cantiga. Não há
tempo para ensaios ou aquecimentos. Toca a levantar o rosto lambuzado de
lágrimas e ventanias de encontro ao céu espumoso, mal encarado de pálpebras semi
cerradas pela timidez quase menina, e aplicar num gesto firme de clique
dedilhado uma guitarrada gemida contra os lábios vermelhos do bagaço para o
espetáculo da dor arqueado sem íris, num fadário elevado a um ímpar inventário quotidiano
de cumplicidade musical.
E assim se amassa a tradição portuguesa com ideias bafejadas pelo pensamento
espontâneo ou preparadas à luz da maga inspiração e se deixam desabrochar
programas de inventivas musicais incríveis, partilhadas em cada dia duro numa
escola dos arredores, numa estação de rádio alternativa, num encontro de amigos
à esquina de prédio de subúrbio ou numa representação teatral à beira rio.
Como aquele programa na Radar, na companhia do criativo Pedro Bidarra, o
pintas da publicidade, que elogiou o excelente trabalho dos Radiohead no tema «Wish you were here»
dos Pink Floyd. Ou na escola prof. Ruy
Luís Gomes a noite de fado do tipo ah
grande fadista! com donativos para a PIC. Ou do adolescente anónimo de
harmónica na boca a apelar ao folk e ao pop dos anos 60 numa esquina recôndita
do Feijó antigo. Ou ainda As Origens
repensadas ao som do Bolero de Ravel
no casino da Trafaria pelo grupo de Iniciação Teatral da Trafaria. Como grandes
escolas que são as vozes dos poetas que inspiram o coração dos músicos e dos
criativos, mesmo quando estes casam as notas com silêncios prenhes de ideação e
de instrumentos. Grande segredo é este o da vida dolorosa e deslumbrante da
criação. Único e irrepetível.
E não tardam os louvores aos cantares alentejanos, que contamos serem em
breve agraciados pela alta comissão da UNESCO, nesta sua árdua missão de
reconhecimento cultural do património musical mundial. Assim seja.
Laranjeiro, 14 de Fevereiro de 2012
Rosa Duarte
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