terça-feira, 24 de julho de 2012

Ah, Fadista!


AH, FADISTA!

   Ah, grande fadista que é o nosso povo. De um fado destino que não são só cantigas. É a alegria da dor por estarmos vivos. Música não fiada, nem sempre antes consentida. É um fado desventrado pelo parto da poesia. Com urbanidade e melancolia. E não há destino como o do fado castiço. Sem cortesias. Único e sentimentalista.

   Nascidos do som, fonte da criação primordial, o grito iça todos os fonemas soltos, palavras pensadas e as sentidas, e cresce num laço em coroa musical singular na ourivesaria da vida. Do povo à monarquia do encantamento se estendeu entronado pela UNESCO. Merecidamente. A par, é claro, de outras formas de expressão musical igualmente castiças como a espanhola e a paraguaia. Como uma voz de assalto à vida sofrida dos bairros enjeitados, de espada em riste para trepar a escala, grave ou aguda, séria da melopeia em taberna marceneira. Sempre com um Alfredo no pódio a desgarrar. A cada passo ouve-se um basa lá rua fora em som cruzado com o cauteleiro que anuncia a grande. Às vezes, de xaile descaído, chorando as vielas sombrias em invocações ao homem verdadeiro, em rebrilho de pele encarquilhada da Mariquinhas da tasca À Rasquinha do Tó Fisga. E vamos embora Pacheco que se faz tarde com a cantiga. Não há tempo para ensaios ou aquecimentos. Toca a levantar o rosto lambuzado de lágrimas e ventanias de encontro ao céu espumoso, mal encarado de pálpebras semi cerradas pela timidez quase menina, e aplicar num gesto firme de clique dedilhado uma guitarrada gemida contra os lábios vermelhos do bagaço para o espetáculo da dor arqueado sem íris, num fadário elevado a um ímpar inventário quotidiano de cumplicidade musical.   

   E assim se amassa a tradição portuguesa com ideias bafejadas pelo pensamento espontâneo ou preparadas à luz da maga inspiração e se deixam desabrochar programas de inventivas musicais incríveis, partilhadas em cada dia duro numa escola dos arredores, numa estação de rádio alternativa, num encontro de amigos à esquina de prédio de subúrbio ou numa representação teatral à beira rio.

   Como aquele programa na Radar, na companhia do criativo Pedro Bidarra, o pintas da publicidade, que elogiou o excelente trabalho dos Radiohead no tema «Wish you were here» dos Pink Floyd. Ou na escola prof. Ruy Luís Gomes a noite de fado do tipo ah grande fadista! com donativos para a PIC. Ou do adolescente anónimo de harmónica na boca a apelar ao folk e ao pop dos anos 60 numa esquina recôndita do Feijó antigo. Ou ainda As Origens repensadas ao som do Bolero de Ravel no casino da Trafaria pelo grupo de Iniciação Teatral da Trafaria. Como grandes escolas que são as vozes dos poetas que inspiram o coração dos músicos e dos criativos, mesmo quando estes casam as notas com silêncios prenhes de ideação e de instrumentos. Grande segredo é este o da vida dolorosa e deslumbrante da criação. Único e irrepetível.

   E não tardam os louvores aos cantares alentejanos, que contamos serem em breve agraciados pela alta comissão da UNESCO, nesta sua árdua missão de reconhecimento cultural do património musical mundial. Assim seja.

                                                                        Laranjeiro, 14 de Fevereiro de 2012     

                                                                                          Rosa Duarte

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