sábado, 28 de julho de 2012

viagem da mente


 VIAGEM DA MENTE

   Estou de regresso. Oiço os motores, páginas de jornal pacientes, vozes de hospedeira tranquilizadoras. Rola-se. Acelera-se. Assinalo o céu claro que deixa ver a lua, o desenho riscado de nuvens, tons crepusculares de pastel, os passeios longos na cidade sem muro, os pequenos concertos de harmónica anónima, saudações amigáveis, sumos saborosos quase naturais, os guias tão esplêndidos, o outono pintado de vermelho luminoso. Cumprimentos de civilização. Contar os minutos e pensar nos outros, para esquecê-los ou revisitá-los. De dedos fugazes. Guardar a sua história na carteira. Sons feitos de corpos que se erguem ao sinal sonoro. Permaneço com palavras e avisos. Baixar o consumo de álcool. De seguida uma breve refeição. O sono é alheio. Viajar são ímpetos de virtualidade. Impulsos tossidos. Tímpanos descolados. Gemidos de microfone. As palavras abraçam sons de guitarra. Sente-se a brisa como uma canção de amor. Tangida. Pacificada. Entrelaçada pelos fios de poeira feitos tendões de peregrino. Ouve-se a tosse de um peluche ao colo de uma criança. Bobines de filmes ávidas de mãos cheias de histórias. Os estofos assobiam nos assentos visitados. A noite em volúpia discorre vultos suspensos no tempo. Miudinho é o frio que engrandece o regresso. Silhuetas de corpos na correnteza alcatifada sem estrelas. Garrafas anónimas tilintam no balcão recolhido. Uma infinitude de sentidos mapeia o pensamento. Advertem-me: tens de perder alguma coisa para conquistares. Hoje de manhã deste sentido às palavras quando partiste? As mãos descansam os frémitos de aventura. A intenção obstinada de desvendar o que é o ser. Como aguentar as luzes baixas sobre as solidões povoadas de vozes e de olhares? São rotas de viagem impostas pelo tráfego moribundo e agonizante. Bato com a caneta ao de leve no papel à espera de ver escrita a prece ao inefável que é incognoscível, não perecível. Os coelhos brancos sempre apressados parecem cegos de tanto vermelho no olhar. Crianças brincam com as rugas da mãe sem-tempo. Propagam livros sem bonecos sobre a nova civilização. São limites de seiva entrelaçados. We are flying to heaven. Wish you a pleasant flight. Os sons amortecem as bocas sem fome. A tosse persiste. Sedimentos de imaginação. As jovens ideias são simples cúmplices da missão catártica do amanhecer. A balança orgânica não vai enlouquecer, mas reciclar. É a livre desconexão pensante coagida pela curiosidade refinada do ser. O tempo escasseia. O coelho corre, corre sempre, quase vitorioso. Aplauso festivo. Visceral. A água escorre-te papel abaixo no assento até chegar ao sentido, formando palavra. Saciando-a. Multiplicando-a. Incham e crescem no coração do texto, soltando-se da tinta e do traço. É um gesto feito golpe, mas tomo um gole, quase preto de musgo. Os óculos ficam dependurados ao peito a discernir migalhas de texto com lentes. Sinto passos de passarelle. De excentricidade literária. Alucinante. Quase abstrata. Quase espectral. Declino-me às estátuas do tempo e invento verbos no ecrã luminoso do posto de vigia. Faz favor de escrever corretamente, ouviste?! É melhor encontrarmo-nos à esquina da pena que escreveu o primeiro soneto de amor, não achas? Doeu tanto, às voltas no jardim da musa a ruminar amores. Apetece-me decorar palavras exultantes e espetá-las na declaração de irs. Emerjo desta irracionalidade vital que limpa o silêncio da noite. Agradeço-lhes a intimidade do voo. Desço contigo à plataforma para reconhecer o corpo do feto que saiu do ventre do tempo oco. Feito feto texto de rosto luzidio, olhar semicerrado de compromisso primário. Assino a explosão de sentido aqui tão pouco real e disseminada no ato de desespero criativo.

                                                       Sem Terra, 1 de novembro de 2011                        Rosa Duarte

Sem comentários:

Enviar um comentário