VIAGEM DA MENTE
Estou de regresso. Oiço os motores, páginas de jornal pacientes, vozes
de hospedeira tranquilizadoras. Rola-se. Acelera-se. Assinalo o céu claro que
deixa ver a lua, o desenho riscado de nuvens, tons crepusculares de pastel, os
passeios longos na cidade sem muro, os pequenos concertos de harmónica anónima,
saudações amigáveis, sumos saborosos quase naturais, os guias tão esplêndidos,
o outono pintado de vermelho luminoso. Cumprimentos de civilização. Contar os
minutos e pensar nos outros, para esquecê-los ou revisitá-los. De dedos
fugazes. Guardar a sua história na carteira. Sons feitos de corpos que se
erguem ao sinal sonoro. Permaneço com palavras e avisos. Baixar o consumo de
álcool. De seguida uma breve refeição. O sono é alheio. Viajar são ímpetos de
virtualidade. Impulsos tossidos. Tímpanos descolados. Gemidos de microfone. As
palavras abraçam sons de guitarra. Sente-se a brisa como uma canção de amor.
Tangida. Pacificada. Entrelaçada pelos fios de poeira feitos tendões de
peregrino. Ouve-se a tosse de um peluche ao colo de uma criança. Bobines de
filmes ávidas de mãos cheias de histórias. Os estofos assobiam nos assentos
visitados. A noite em volúpia discorre vultos suspensos no tempo. Miudinho é o
frio que engrandece o regresso. Silhuetas de corpos na correnteza alcatifada
sem estrelas. Garrafas anónimas tilintam no balcão recolhido. Uma infinitude de
sentidos mapeia o pensamento. Advertem-me: tens de perder alguma coisa para
conquistares. Hoje de manhã deste sentido às palavras quando partiste? As mãos
descansam os frémitos de aventura. A intenção obstinada de desvendar o que é o
ser. Como aguentar as luzes baixas sobre as solidões povoadas de vozes e de
olhares? São rotas de viagem impostas pelo tráfego moribundo e agonizante. Bato
com a caneta ao de leve no papel à espera de ver escrita a prece ao inefável que
é incognoscível, não perecível. Os coelhos brancos sempre apressados parecem
cegos de tanto vermelho no olhar. Crianças brincam com as rugas da mãe
sem-tempo. Propagam livros sem bonecos sobre a nova civilização. São limites de seiva entrelaçados. We are flying to heaven. Wish you a pleasant flight. Os
sons amortecem as bocas sem fome. A tosse persiste. Sedimentos de imaginação.
As jovens ideias são simples cúmplices da missão catártica do amanhecer. A
balança orgânica não vai enlouquecer, mas reciclar. É a livre desconexão
pensante coagida pela curiosidade refinada do ser. O tempo escasseia. O coelho
corre, corre sempre, quase vitorioso. Aplauso festivo. Visceral. A água
escorre-te papel abaixo no assento até chegar ao sentido, formando palavra.
Saciando-a. Multiplicando-a. Incham e crescem no coração do texto, soltando-se
da tinta e do traço. É um gesto feito golpe, mas tomo um gole, quase preto de
musgo. Os óculos ficam dependurados ao peito a discernir migalhas de texto com
lentes. Sinto passos de passarelle.
De excentricidade literária. Alucinante. Quase abstrata. Quase espectral. Declino-me
às estátuas do tempo e invento verbos no ecrã luminoso do posto de vigia. Faz
favor de escrever corretamente, ouviste?! É melhor encontrarmo-nos à esquina da
pena que escreveu o primeiro soneto de amor, não achas? Doeu tanto, às voltas
no jardim da musa a ruminar amores. Apetece-me decorar palavras exultantes e
espetá-las na declaração de irs. Emerjo desta irracionalidade vital que limpa o
silêncio da noite. Agradeço-lhes a intimidade do voo. Desço contigo à
plataforma para reconhecer o corpo do feto que saiu do ventre do tempo oco. Feito
feto texto de rosto luzidio, olhar semicerrado de compromisso primário. Assino
a explosão de sentido aqui tão pouco real e disseminada no ato de desespero
criativo.
Sem
Terra, 1 de novembro de 2011 Rosa Duarte
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