Ser velho não é doença
Os gajos morrem em média cinco anos mais cedo
do que elas, dizias-me tu, jovem rapaz a propósito da viuvez, num tom
sentido de constatação. Uma conversa sobre viuvez que te incomoda pela solidão.
Daquele paradoxo de solidão que serve de alimento aos idosos pelas recordações silenciosas
remoídas por suspiros dolorosos e os precipitam para a linha que se entende terminal
da sua história nem sempre partilhada. Tu és um adulto jovem que teima em pensar
na avó. Sim, ser velho não é doença. Muitas doenças nascem no pensamento. Ah,
pois, é mais uma longeva num misto de passado-presente que a divide, confunde e
domina e a faz desejar o momento zénite, aquele êxtase de horizonte excelso, alojado
para além do seu semicerrado de olhos pesado e pensativo, crente no troféu paradisíaco
sonhado, pleno de calorosos encontros. Há beleza até nas rugas como sorrisos em
linha de pontas cruzadas numa expressão de despedida. Reparas que o final se
prepara para ultrapassar a fasquia da vida no fio de prumo da estrada, com a
cumplicidade do azul imenso. Aparentemente sem esforço nem súplica. Imaginas qual
será o horizonte da sua mente, sempre em perspectiva, porque é daquelas que não
conhece desistências nem derrotas na peregrinação identitária. Vejo que a encorajas:
é só mais um troço de caminho, avó. Pensas no sentido da vontade dos passos lentos
de quem ainda observa os instantes por palavras respiradas. Sempre com o tal horizonte
no fundo do olhar alagado. Ficará à vista na hora do crepúsculo à beira vida? Crês
que sim, tu próprio o vislumbras nela estampado; acender-se-á aquela linha
luminosa verde ao fundo no último estertor de sol, e o seu derradeiro desejo
realizar-se-á…
Vou visitar a minha avó enquanto ainda me conhece, continuas. Preocupa-te
o avô falecido tornado fantasia na evocação obsessiva da sua presença. Ascende
e invade a sua cabeça. Preocupa-te que saia de casa sem conhecer os caminhos? Pois,
são as ausências que ainda lhe povoam o coração e a mente. Erra em silêncio de
notas no regaço. O que anda a senhora
aqui a fazer sozinha com esta chuva?, contaste-me. Alegra-te que não se
coíba de agradecer. Desfaz-se em explicações sobre vozes de máquinas que lhe
pedem para visitar um cemitério, uma escola, um santuário…um passado distorcido
no tempo. Vem, rapaz, que te acompanho na visita à tua avó. As tuas palavras
exalam amores de vovozinha. Onde está ela? Ora se barrica de medo, ora quer de
volta o passado, ora se compraz com o novo dia, confidencias. Fazes bem em
levá-la à missa das nove. Ajudas à despedida da casa, enorme mundo adormecido
pelo tempo envelhecido. Salvam-se algumas molduras presas na memória familiar.
Uma ou outra saia melhorzita. Chinelos e papelada antiga. A brisa sopra a
apressar a despedida. Um dia calmo de domingo. Os filhos invadidos pela azáfama
do momento. Tu, são muitos netos?, a fixar-lhe o semblante saudoso de vozes
nítidas na penumbra estreita do corredor da casa. Antes encolhida pelo número
de gente que lá vivia. Hoje enorme e despida, apesar da imponente mobília exausta
e do recheio desvalido.
Foste feliz nesta casa, avó?, perguntaste-lhe.
E ela calava-se a responder-te. Quase alegria proibida, pelo amor que acordava.
É uma afronta para os peregrinos. Ser feliz não é para velhos. Que estendem a
mão por um breve sorriso. Que mendigam a bolsa das atenções. Tentações de
sentimento de pena deixam crescer esgares de quase sorriso nas faces de cada
um.
Laranjeiro, 15 de
Novembro de 2011
Rosa Duarte
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