CRÓNICA « HOSPITAL DO DIA »
Ouço o raspar de um ancinho metálico em forma de pêra no alcatrão com
gravilha à beira de um canteiro, junto ao Hospital do Dia. É uma rapariga de
cabelo preto escorrido, jovem e gorduchita, que está lentamente a reunir as
folhas amareladas espalhadas pelo lancil e pela estrada de acesso. É um recinto
grande com vários edifícios. Este é um deles. Nunca aqui a este tinha vindo.
Há pouco, na sala de espera para a consulta de psicologia comportamental
de M., fui sorrindo a um sujeito de olhos cor de azeitona madura lavada pelas
primeiras chuvas, que me foi devolvendo o sorriso, animadamente. O seu olhar
era quase brilhante com dois peixinhos dentro, de guelras ansiosas, à procura
do sentido da minha comunicação. Sem desistir do sorriso amadurecido pelos
sinais de fumo intenso nos seus dentes, cansados do castigo do tabaco nos seus
nervos, de vez em quando olhava para o lado.
De pé junto ao balcão do secretariado, aproximou-se de uma rapariga que
fui percebendo ser a esposa e comentou que não aparecia ninguém para atender.
Eu cortesmente respondi-lhe que o senhor Carlos tinha-se ausentado, mas que
devia ser por pouco tempo. Esta familiaridade com o funcionário foi casual
quando ouvi tratarem-no pelo nome. Achei que o senhor-rapaz (porque ainda sou
uma rapariga da minha idade) seria já cliente habitual (cliente não doente, como
diria a minha saudosa obstetra Cesina Bermudes) e sentir-se-ia mais satisfeito
com uma resposta deste tipo. Não senti que o senhor-rapaz estivesse
verdadeiramente impaciente, mas tinha que arranjar um pretexto à altura para
fazer conversa.
A esposa, embora entretida com o olhar periférico habitual do meu
acompanhante, a certa altura sentiu-se incomodada com a minha atitude. Estava a
conseguir o que pretendia. Para quê? Para me defender, só mais uma vez, daquele
flagelo da dor miudinha que se entranha nos ossos, sobe pela espinha, atinge o
cérebro pelo lado da nuca e pelos parietais, paralisa os músculos faciais e
injeta umas reações alérgicas subcutâneas nos papinhos dos olhos, que os faz
tremelicar. Então essa dor cirúrgica começa a descer pelo peito, cada vez mais
estrangulado pela falta de ar, atinge a zona do estômago, que desencadeia
pequenos espasmos, perfura quase imperceptíveis orifíciozinhos nos intestinos,
insuflando-lhes goles mastigados de ar até ficarem inchados, doridos e
vomitarem o assunto num estado deteriorado. O mais das vezes são situações de
cólicas quotidianas, para as quais pouco se adquire resistência ou anti-corpos.
Nestas circunstâncias, então, ou saímos do circuitos social e a coisa
acalma, creio que não só para mim, para ele também (humanos de eternos
paradoxos), ou são as pessoas que se afastam, mais ou menos naturalmente, ou
então eu tenho que acionar o plano C, que foi o caso no Hospital do Dia. E
resultou, naquela situação restrita e localizada.
A Dra. Mara veio chamar M. e eu fui para uma esplanada exterior preparada
pelos doentes em atividades (como ouvir chamarem-lhe). O senhor-rapaz, após
algumas tentativas de interação comigo, onde chegou a dizer que tinha ali
estado internado um mês, se eu também andava nas atividades, se eu era de
Lisboa, que tomava ali uma injeção uma vez por mês, rematou o capítulo da nossa
ligeira intimidade, confidenciando-me: - É muito risonha! – e foi para dentro
porque estava muito calor, mas acho que sobretudo porque a mulher já não estava
a gostar da brincadeira.
Continuei sentada a escrever o que estou agora a ler, numa mesa de plástico
do Bicafé Expresso, até que a certa altura passa o casalinho, ele sorriu-me
pela última vez, eu devolvi-lho, fiz questão de olhar para a mulher e
sorrir-lhe e é então que eles dão as mãos. Ele foi segredando suposições sobre
a minha pessoa. Penso que ele lhe terá dito: - Querida, esta senhora deve fazer
parte do programa da minha recuperação.
É início de Setembro. O Verão que parecia ter enfraquecido, recuperou o
fôlego e continua a abraçar-nos todo disponível para nos pôr a língua de fora. O
sol não é ciumento e oferece a companhia das suas amigas sombras, fiéis refúgios
no caminho pedregoso, sem encostas.
Saudámo-nos e regressámos a casa para almoçar.
Rosa Duarte
Lisboa, 7 de Setembro de 2011
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