sábado, 28 de julho de 2012

hospital do dia


                                                       CRÓNICA    « HOSPITAL DO DIA »

   Ouço o raspar de um ancinho metálico em forma de pêra no alcatrão com gravilha à beira de um canteiro, junto ao Hospital do Dia. É uma rapariga de cabelo preto escorrido, jovem e gorduchita, que está lentamente a reunir as folhas amareladas espalhadas pelo lancil e pela estrada de acesso. É um recinto grande com vários edifícios. Este é um deles. Nunca aqui a este tinha vindo.

   Há pouco, na sala de espera para a consulta de psicologia comportamental de M., fui sorrindo a um sujeito de olhos cor de azeitona madura lavada pelas primeiras chuvas, que me foi devolvendo o sorriso, animadamente. O seu olhar era quase brilhante com dois peixinhos dentro, de guelras ansiosas, à procura do sentido da minha comunicação. Sem desistir do sorriso amadurecido pelos sinais de fumo intenso nos seus dentes, cansados do castigo do tabaco nos seus nervos, de vez em quando olhava para o lado.

   De pé junto ao balcão do secretariado, aproximou-se de uma rapariga que fui percebendo ser a esposa e comentou que não aparecia ninguém para atender. Eu cortesmente respondi-lhe que o senhor Carlos tinha-se ausentado, mas que devia ser por pouco tempo. Esta familiaridade com o funcionário foi casual quando ouvi tratarem-no pelo nome. Achei que o senhor-rapaz (porque ainda sou uma rapariga da minha idade) seria já cliente habitual (cliente não doente, como diria a minha saudosa obstetra Cesina Bermudes) e sentir-se-ia mais satisfeito com uma resposta deste tipo. Não senti que o senhor-rapaz estivesse verdadeiramente impaciente, mas tinha que arranjar um pretexto à altura para fazer conversa.

   A esposa, embora entretida com o olhar periférico habitual do meu acompanhante, a certa altura sentiu-se incomodada com a minha atitude. Estava a conseguir o que pretendia. Para quê? Para me defender, só mais uma vez, daquele flagelo da dor miudinha que se entranha nos ossos, sobe pela espinha, atinge o cérebro pelo lado da nuca e pelos parietais, paralisa os músculos faciais e injeta umas reações alérgicas subcutâneas nos papinhos dos olhos, que os faz tremelicar. Então essa dor cirúrgica começa a descer pelo peito, cada vez mais estrangulado pela falta de ar, atinge a zona do estômago, que desencadeia pequenos espasmos, perfura quase imperceptíveis orifíciozinhos nos intestinos, insuflando-lhes goles mastigados de ar até ficarem inchados, doridos e vomitarem o assunto num estado deteriorado. O mais das vezes são situações de cólicas quotidianas, para as quais pouco se adquire resistência ou anti-corpos.

   Nestas circunstâncias, então, ou saímos do circuitos social e a coisa acalma, creio que não só para mim, para ele também (humanos de eternos paradoxos), ou são as pessoas que se afastam, mais ou menos naturalmente, ou então eu tenho que acionar o plano C, que foi o caso no Hospital do Dia. E resultou, naquela situação restrita e localizada.

   A Dra. Mara veio chamar M. e eu fui para uma esplanada exterior preparada pelos doentes em atividades (como ouvir chamarem-lhe). O senhor-rapaz, após algumas tentativas de interação comigo, onde chegou a dizer que tinha ali estado internado um mês, se eu também andava nas atividades, se eu era de Lisboa, que tomava ali uma injeção uma vez por mês, rematou o capítulo da nossa ligeira intimidade, confidenciando-me: - É muito risonha! – e foi para dentro porque estava muito calor, mas acho que sobretudo porque a mulher já não estava a gostar da brincadeira.

   Continuei sentada a escrever o que estou agora a ler, numa mesa de plástico do Bicafé Expresso, até que a certa altura passa o casalinho, ele sorriu-me pela última vez, eu devolvi-lho, fiz questão de olhar para a mulher e sorrir-lhe e é então que eles dão as mãos. Ele foi segredando suposições sobre a minha pessoa. Penso que ele lhe terá dito: - Querida, esta senhora deve fazer parte do programa da minha recuperação.

   É início de Setembro. O Verão que parecia ter enfraquecido, recuperou o fôlego e continua a abraçar-nos todo disponível para nos pôr a língua de fora. O sol não é ciumento e oferece a companhia das suas amigas sombras, fiéis refúgios no caminho pedregoso, sem encostas.

   Saudámo-nos e regressámos a casa para almoçar.



                                                                                                         Rosa Duarte



                                                                                        Lisboa, 7 de Setembro de 2011

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